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As rosas… tal qual a vida

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Aos sábados e domingos de manhã, um pouco antes da missa, gosto de visitar o túmulo do meu pai. Não o faço por qualquer traição ao Céu, se é aqui, nesta terra vermelha do barro de Vila Viçosa, que permanece adormecido o colo, assim como os beijos, dos meus tantos instantes de Céu. Faço-o por fé e fidelidade. Nestas alturas gosto de trazer uma flor que tenhamos num dos vasos da varanda, sem qualquer pretensão, às vezes até muito pequena, mas colhida entre mim e a minha mãe, um pouco antes de eu sair de casa. No fim de semana passado não conseguimos ver aberto um muito promissor botão de rosa, que na manhã de segunda-feira nos brindou, finalmente, com todo o seu esplendor. Como na vida poderá faltar tempo para tudo, mas nunca para cumprir os mais simples detalhes de amor, colhemos o botão, e, de saída para Lisboa, fiz um desvio e fui colocá-lo no túmulo do meu pai. Ainda que por entre uma Ave Maria com pouco fôlego, mas aquilo que se diz, e o modo como se diz, perde sempre para o tanto q

Espaço 2021

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Estaríamos pelos finais dos anos setenta do século passado, e nas salas meio arruinadas do Convento das Chagas, hoje a ilustre Pousada de Vila Viçosa, a nossa catequista pedia-nos para termos cuidado com as brincadeiras, sobretudo, porque aquele hábito de rodopiarmos sobre nós próprios para imitarmos a Maya do Espaço 1999, transformando-nos num animal qualquer, provocava-nos, isso sim, umas valentes tonturas, e nós acabávamos por cair sobre algum monte de entulho que servia de “Eagle 1”, a nossa nave, onde sob as ordens do Capitão Koening e da Doutora Helen Russel, viajávamos pelo espaço. Ontem, vinte e dois anos depois do mítico 1999, e alguns mais desde essas brincadeiras, juntei-me com a minha catequista na missa das onze na igreja de Nossa Senhora da Conceição. Ela, a minha querida Dona Bárbara Elisa, celebrava os seus bonitos 94 anos, e eu, desde o coro, e com a ajuda da minha amiga Madalena Barros, também da leva extraordinária dessas brincadeiras no Convento da Chagas, cuidáva

A Abelha, a Carocha e o João Ratão

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Esta semana cruzei-me com uma abelha que voava, estranhamente tranquila, entre jarras cheias de flores artificiais. Ignorou-me nesta sua caminhada infrutífera pelo pólen, e o seu sossego será, quiçá, a certeza de que, tarde ou cedo, chegará às flores verdadeiras que a possam abraçar. Nesta mesma semana tive o privilégio de poder viajar com os meus sobrinhos, partilhando com eles alguns detalhes do Alentejo pré e pós barragem do Alqueva. O João viajou ao meu lado, e o Luís atrás, devidamente protegido, como é natural, pelo seu cinto de segurança, que acende uma luz verde no painel de comandos sempre que é ativado. Mas o cinto do meio, ao seu lado, também estava ativado, e verde, porque com o Luís viajou um amigo ou amiga invisível, personagem das muitas histórias de que ele gosta, e que vive intensamente, insurgindo-se, por exemplo, com a imprudência da Carochinha, que, desleixada, deixou um caldeirão ao lume. Direi eu que o dito marido, João Ratão, que nesse caldo morreu afog

Uma aula de eternidade

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A porta do nosso liceu era a última que poderia ver quem saía de Vila Viçosa no sentido de Borba. Talvez por isso, ao olharmos para aquela primeira curva da estrada ladeada por muros caiados, e oliveiras que se lhe sobrepunham com a legitima divindade de um altar, nós sentíssemos que o futuro poderia ser tudo aquilo que o coração mandasse. Não existiam casas erguidas, gritos ou gestos de alguém, que pudessem frenar-nos o passo e a vontade, obrigando-nos a despertar. Era tanto o sonho que respirávamos, todos juntos, entre a lírica de Camões, a fotossíntese, a trigonometria… e a amizade, que é, comprovadamente, muito mais do que um conceito. Um dia construíram um liceu novo e nós mudámos para junto da Estação do Caminho de Ferro. O mesmo sonho, já não sobre o afago dos paralelepípedos, mas sobre o ruido metálico dos carris. Em altura de greve dos maquinistas, até aproveitámos o “furo” nas aulas para irmos tomar uma máquina, aproveitando para fazer uma foto. E continuámos a

Os meus avós

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A minha avó Francisca era a melhor amiga da cal, bastando um dia breve para que as paredes ficassem divinamente imaculadas, tal qual manda o Alentejo. E ao fim da tarde, antes de devolvermos ao seu sítio, cada peça da mobília, eu invejava-lhe o olhar e o jeito que dispensavam a régua na hora de desenhar a direito, o rodapé encarnado. Fazia-me uvada, com uvas, mel e frutos secos, oferecia-me cravos dos vasos que tinha na janela que dava para a Rua do Poço, e eu ia com ela lavar a roupa ao ribeiro, com um petisco para o almoço e milhares de histórias para contar. O meu avô Joaquim trazia-nos frutos da horta, e a única vez que eu caí da escada na casa da Rua de Três foi pela pressa de o ir abraçar, quando nos vinha entregar um saco de limões. Ao tratar da terra encontrava moedas antigas que me oferecia e eu ia guardando num boneco de cortiça que fiz nos Trabalhos Manuais, no primeiro ano do ciclo preparatório. Eu ia com ele até ao colmeal, e voltávamos com peras pequenas que vendí

Os nossos longos dias que buscam as cerejas

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Os longos dias frios da neve só ganharão sentido nas manhãs em que, finalmente, trincarmos as cerejas maduras, porque só a última sílaba poderá desvendar a perfeição e o açúcar de uma rima. Na história de cada um existem parágrafos em que a Terra dorme à espera de que cheguemos nós, os seus príncipes e cavaleiros, para a resgatarmos do sono e do pesadelo, no benefício de um beijo intenso e completo, daqueles capazes de dissipar todas as dores e os silêncios de milénios. Sem punhais ou pistolas, e com nada mais do que uma alma lavada que se busca inteira e se faz maior. Responder ao ímpeto dos sonhos, tornando-nos maiores, jamais será um ato egoísta, se de amor se vive, porque quanto mais for um, muito mais seremos todos. E pelo contrário, desperdiçarmo-nos um a um, lentamente e sem brio, seria morrermos todos.   Far-se-á, quiçá, demasiado longa a estrada, com os pés gelados envoltos nos flocos brancos de um novembro triste, mas a sorte, que assim usamos chamar às cerejas, dev

Morrer seria ficarmos longe

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Sou um príncipe a vaguear descalço por um bosque de silêncio, tomando das horas, todas as bagas nascidas do tanto que fomos e que somos juntos. E sinto ainda, muito vivo, ao meu redor, o eco das palavras todas, tantas, que trocávamos. Bebo-o sofregamente, e de um trago, porque é de água fresca que se trata, e a saudade é esta dor de um dia a arder… Guardei para mim o ruído da porta a abrir-se por entre o tilintar das chaves que guardavas no bolso, e ainda espero por ele quando o sol se entorna para oeste e se aproxima a hora do jantar. Perante uma novidade, ou algo bom que me aconteça, ainda penso que terei de a partilhar contigo. Por brevíssimas frações de segundo, num carrossel do pensamento que depois, rapidamente, deixa que a razão se lhe sobreponha. Bendito o pensamento que me faz a vontade, e não te deixa “abalar”. Um ano de ausência dos nossos beijos. E mesmo sabendo que a fé me puxa o olhar para o Céu, visito-te no túmulo, e acaricio com flores frescas, essa terra tão

Obrigado

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No dia em que cumpri os meus cinco anos, muito feliz porque fazia coincidir a idade com o dia do mês de julho em que nasci, senti-me importante, e, inevitavelmente muito crescido. Afinal, entrara na antecâmara da escola. Ontem, passados cinquenta anos desde esse dia, e com um duplo cinco na idade, acho que me senti muito menos crescido, e nos antípodas da importância desse longínquo verão de 1971. O mundo dissolve-nos a importância, e os poetas com quem nos vamos alimentando, oferecem-nos esta visão de que aquilo que temos para crescer é infinitamente maior do que tudo o que já conseguimos. E ainda bem que é assim, porque um Homem que se sinta completo é uma vida suspensa e arrumada. Mas há muito que persiste desses aniversários celebrados a limonada e bolos caseiros, e de entre o melhor estão os amigos. Os amigos acendem uma vela nos instantes em que nos sentem sem sol, oferecem-nos abraços que, por terem flores, nos devolvem à primavera, e ainda que por vezes os vejamos cam

A liberdade “esteve” a passar por aqui

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No verão de 1996, acompanhado pelo meu amigo João Paulo, cheguei à estação central de Budapeste, vindo de Viena no Expresso do Oriente. Sem Poirot e sem qualquer crime a bordo. Cerca de sete anos após a queda do muro e da cortina de ferro, deparei-me com uma cidade suja, de ruas infestadas de lixo, onde a única preocupação tinha sido retirar os símbolos comunistas, cujas sombras ainda estavam visíveis na pedra dos edifícios. A senhora que nos vendeu os bilhetes para o metro, muito empenhada no seu tricot, e incomodada pela nossa presença, praguejou mil desaforos na sua língua nativa enquanto soprava. Fomos assaltados nessa viagem de metro, com grupos de homens a rasgarem-nos as mochilas, e sempre que nos sentávamos numa esplanada para tomar um café, poderíamos colecionar dezenas de panfletos que publicitavam bordéis e sexo a bom preço. Em Budapeste, como em tantos outros lugares, sem o menor civismo, na ausência da autoridade e do pudor, a liberdade era celebrada dessa forma ab

Chamar o verão

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Entre a gente acomodada e os gatos rebeldes que insistem chamar o verão, eu preferirei sempre os segundos, até porque eles são o motor de conversas bem mais interessantes. Às vezes a chuva parece desmentir-nos o solstício, junho e este quase São João, mas existe sempre uma janela alta, que, mesmo fechada, nos servirá de abrigo enquanto insistimos, damos fôlego ao grito e chamamos o verão. O melhor de uma janela será sempre esta perspetiva que ela generosamente oferece bem para lá de nós, muito mais do que a luz que aporta para os sofás de veludo aonde gostamos de nos sentar, quiçá entretidos em dissertações sábias sobre o “vamos indo” e o “muito riso, pouco siso”. Sentados, crescidos na idade, mas adeptos das viagens de carrossel, colorida ilusão de movimento em redor de um eixo que somos nós mesmos. O riso ateia e celebra os bons pensamentos, elevando-os aos sonhos, e o “vamos indo” é infinitamente mais mortiço do que estar quieto num sítio de que se goste. Quem acredita não

Surfar a superfície do tempo

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Vivemos entretidos a surfar a superfície do tempo, não deixando, de nós, nada mais do que traços coloridos que, mais cedo ou mais tarde, acabam dissolvidos nas brisas salgadas. Somos a rima, muito mais do que o pão da palavra, e, fugindo à dor da apneia do mergulho que nos ofereça profundidade e dimensão, esperamos passivamente, e comodamente sentados na praia, o alimento que a maré cheia possa trazer, e abandonar sobre a areia. Que importa se somos apenas dois dedos de gente, se a nossa sombra, projetada sobre a parede branca, e pelo impulso de uma luz qualquer, nos oferece contornos de super-homem? E pudessem os gestos ser embrulhados em aspas, e a narrativa de tudo isto que queremos mostrar, seria devolvida à justiça de uma citação, de um ser alheio e distante. Se as cruzes traçadas sobre o peito pudessem acordar e ressuscitar as almas. Se libertássemos os livros da “falta de tempo”, e as palavras dos poetas fossem mais do que meros adornos de montras com pernas. Se os beijos retoma

Viagem às ruas escuras

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Não existem cidades sem ruas estreitas, mal alumiadas, e muitos agrestes, no empedrado e na inclinação, tal qual os dias e aqueles seus minutos que doem. Gosto muito de vos falar das avenidas solarengas que respiram a primavera, acredito, inclusive, que estarão acostumados a isso, mas hoje, com o devido pedido de desculpas, convido-vos a caminhar comigo na escuridão desses becos mais sombrios. Regressamos por momentos aos anos setenta, e aos momentos em que a liberdade florescia finalmente no regime e na ambição da gente, mas o gesto da maioria era ainda refém dos estereótipos e dos seus julgamentos sumários, invariavelmente, infelizes. A liberdade leva o seu tempo até aprender a lidar com o respeito pela identidade, e por ela, com o reconhecimento da grandeza da diversidade. Ao contrário da maioria dos meus colegas, eu preferia ler um livro a jogar à bola, gostava mais de estudar do que ir destruir ninhos e jogar à pedrada, tinha boas notas, não ridicularizava as raparigas, e

Este maio que tarda em amadurecer

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É no silêncio que melhor se leem os pássaros, e que os glóbulos da ousadia, que oferecem coragem ao sangue da alma da gente, se inspiram para voar num ímpeto assumido de revolução. De encontro ao amor e à paz, por via liberdade, porque cabe a maio cumprir e demonstrar que abril não foi em vão.   Este tempo chamado maio, maduro só será nesse dia, quando afastarmos os ramos de giesta para aproveitarmos as janelas que a fé nos rasga até nas horas da solidão mais opaca e cruel. Um maio sem vertigem, por mais alto que se nos espreitem os desejos. Um maio sem capas e sem adornos, por mais que nos atormente a moral. Um maio com esquerda e com direita, ambidestro na mais acérrima defesa da dignidade e da verdade. Um maio com Israel e com Palestina, e com as duas legítimas faces de um Deus só, jamais desmembrado por inspiração do poder do dinheiro. Um maio sem náufragos, sem cá e lá, sem nós e os outros, sem fome e sem intolerância. Um maio sem corruptos, sem malabaristas e mágico

Quanto mais verde é a erva, mais rubra se faz a papoila…

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O meu pai é adepto do Sporting, e se acaso vos surpreende o tempo verbal que utilizo nesta afirmação, esforcem-se por entender a relação muito próxima que a fé e o amor têm com a eternidade. Cresceu o pequeno grande Artur numa família de Benfiquistas, mas inspirado pelo padrinho, mestre barbeiro com quem aprendeu o ofício, e por cinco jogadores do Sporting reconhecidos pelo seu magistral acerto de violinos, acabou adepto e sócio dos Leões. Quando eu nasci, em minha casa havia um azulejo com o símbolo do clube de afeição do meu pai, que vinha a Alvalade ver alguns jogos, e me levava bandeirinhas e cachecóis verdes e brancos. Em vão. Por inspiração do meu tio José Boquinhas, e sobretudo por um senhor de nome Eusébio da Silva Ferreira, eu não me lembro de jamais ter torcido por outro clube que não o Benfica. O meu irmão nasceu cinco anos depois de mim e seguiu-me o gosto. Não me recordo de o meu pai nos ter contrariado nesta futebolística afeição. É claro que havia gente que o

A minha mãe

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Nas manhãs de sexta-feira costumo levar a mãe à cabeleireira, passando obrigatoriamente na casa onde morámos e eu nasci, assim como naquela que foi a residência dos meus avós, os seus pais. Não nos pertencem e ambas apresentam um elevado estado de degradação, que nós nos inibimos, quase sempre, de comentar. Sabemos há muito que é no amor que se nasce, que se cresce... e tudo o mais são paredes e telhados vulneráveis ao tempo. Há alguns anos, enquanto eu jantava com os meus pais num restaurante de Vila Viçosa, um senhor nosso conhecido acercou-se da mesa para nos cumprimentar, e alentado pelo meu celibato não resistiu a perguntar-me: - Então quando é que resolve dar um dia grande aos seus pais? E a minha mãe, antes que eu pudesse articular algumas palavras, respondeu-lhe: - Tem dado muitos dias grandes, graças a Deus. Sei há muito, porque assim aprendi da minha mãe e do meu pai, que o amor se concretiza no ser, muito mais do que em qualquer forma ou detalhe que se possam ver. Qu

O estatuto e a essência

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Pelo final dos anos setenta do século passado, em Vila Viçosa, quando eu fazia da Livraria Escolar, a minha segunda casa, um casal de namorados oriundos da burguesia que então emergia da explosão do comércio do mármore, cumpria o ritual de todos os meses ir adquirir um exemplar da coleção de obras de Eça de Queirós, que a Editora “Livros do Brasil” lançara numa encadernação elegante em tons de encarnado. Deixavam sempre a promessa: - Quando acabarmos estes, vamos começar com os verdes. Sendo que se referiam à coleção das obras do grande Fernando Namora. Tenho dúvidas se estes dois conjuntos de obras primas da nossa literatura persistem nas estantes destas almas, num arranjo muito republicano, no que às suas cores diz respeito, duvidando eu que o Jacinto, entre Paris e Tormes, assim como o João da Ega, entre o Tavares e o Rossio, tenham alguma vez pisado os tapetes de Arraiolos daquela sala Calipolense. A mesma dúvida me assiste relativamente ao Dr. Namora, algures entre Pavia