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A mostrar mensagens de abril, 2020

A liberdade

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À pergunta sobre onde me encontrava no dia 25 de abril de 1974, responderei que na Escola Masculina de Vila Viçosa. Com quase oito anos e a frequentar a segunda classe, terei por certo feito um ditado ou uma cópia socorrendo-me de algum dos textos do livro único por onde todos aprendíamos. O mesmo livro de há muitos anos, onde todos os homens eram honrados e pobres, as mulheres domésticas de avental, e os rapazes e as raparigas, cada um para seu lado, éramos limpinhos apesar dos remendos na farda. Liberdade? Não entendi então, e com clareza, sobre o tanto que aquela palavra se ouvia numa quinta-feira que amanhecera húmida e algo fria, para um tão avançado abril. Entendi mais parte o valor da palavra e do conceito, à medida que fui crescendo sem deixar de poder ser eu. Tinha muito boas notas, era dos melhores alunos da turma, e era um génio, não por sê-lo de verdade, mas porque muito pouco haveria de esperar do filho de uma modista e de um barbeiro. Ainda se um dos meu

O livro

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O livro é a viagem solitária de um Homem nu e descalço, por sobre o barro, as estradas e as ruas que a alma lhe pede, existam elas ou não. O livro, inevitavelmente, tem o coração desse Homem a bombear sangue para a gente toda que ele diz, incendiando-a de um despudor que não omite chagas, risos, dores, e outros sentimentos que tais. O livro é o eficaz antídoto da morte, constrói casas, derruba telhados, ressuscita fontes e rios, aproxima-nos do mar, traz areia do deserto, o aroma da savana… Tendo uma impressionante memória, o livro brinca com as horas, empurrando-as ou aproximando-as a seu belo prazer, ao mesmo tempo que destrói a ordem natural de todas as coisas. À exceção do dicionário, que o faz por obrigação, que outro livro abarca em si a noção de impossível? Palácio das antíteses, o livro consegue fazer nascer por entre a morte, põe palavras para acalentar silêncios, e oferece a mais irrequieta mobilidade a quem se dispõe a estar quieto. A maior mentira de um liv

Novas aventuras do cerco

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É verdade, o cerco continua, e de cada vez que dou título aos meus post sobre o dito, confesso que me sinto a Enid Blyton a batizar os livros da saga de “Os cinco”. Tudo isto porque sou seu fã, e ainda tenho pendente uma visita ao País de Gales em busca dos Rochedos do Demónio, da Quinta Finniston e do Lago Negro. A registar, amigas Margarida, Patrícia e Sónia, mas só depois da Islândia. Para quem está sitiado, como eu estou há mais de um mês, a companhia dos melhores pais do mundo, e um céu que muda a cada repelão de sol ou trovoada, dá-me um ímpeto enorme de aproveitar aquilo que não é um castigo, mas apenas uma oportunidade alternativa de ser feliz. Sim, confesso, sou um indefectível do otimismo. Também sou indefectível da liberdade, achando por isso que ela deva ser celebrada todos os dias na alma e nos gestos, sejam eles diferentes ou iguais. Por ser da fé, também considero que a forma mais eficaz de beijar a Cristo é estar próximo e ser aliado de todos os que no

Mais noticias do cerco...

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Não sei se têm conhecimento, mas em 1918, em Portugal, o primeiro diagnóstico da mortífera Gripe Espanhola, que matou cerca de 2% da população lusa, foi feito aqui, em Vila Viçosa, num trabalhador rural que regressara do país vizinho, da muito próxima Extremadura. Se juntar a este facto, o de eu ter nascido numa rua, que, chamando-se Rua Gomes Jardim, é conhecida aqui, localmente, por Rua de Três, por nela só terem sobrevivido três criaturas a essa pandemia, poderão imaginar o meu enorme empenho neste confinamento. Total, não vá existir alguma afinidade genética ou geográfica que se associe ao tempo, que esse, eu bem sei, voa, mas em círculos. O BPI, num exercício de Marketing com elevado sentido de oportunidade, continua a enviar-me e-mails diários, dizendo que “este é o momento para os seus planos se tornarem realidade”, e eu já estive mais longe de lhes responder, confessando jamais ter alimentado o sonho de me atirar da janela. Porque se este é o momento, que outro desej

O meu Cristo que já não mora nas pedras

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Quando visitei o santo sepulcro, um padre de corpo imenso e voz severa, dava-nos ordem para entrarmos em grupos de três ou quatro, assinalando posteriormente o fim dos concedidos quinze segundos de oração, com uma insistente e irritante batida do seu anel de ouro contra uma ombreira de pedra. Por entre tamanha ansiedade gerada pelo clérigo, ter lucidez para começar um Padre Nosso, será prova de heroicidade de muito poucos. Não me incluo nesse número restrito. No entanto, passado algum tempo, e já devolvido ao sol de Jerusalém, dei comigo a pensar que o homem tem absoluta razão quando age assim, a jeito de quem nos diz: - Vá meninos, despachem lá isso, porque se andam à procura de Cristo, façam-no entre os vivos. Ele passou por aqui, mas já foi há muitos anos. Não sei se foi por causa do Covid, das subtilezas do destino, dos anos maléficos que usam vir a bordo do início dos séculos... mas é semana santa e eu estou em Vila Viçosa há quase um mês. Trabalho durante o di

Roteiro para uma Páscoa em casa | Domingo de ramos

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O antídoto do confinamento é a criatividade, e se hoje não podemos subir a Jerusalém com palmas, alecrim e ramos de oliveira, celebrando a entrada triunfal de Cristo, desatemos essa festa na imaginação e na intimidade da sala de estar, por estes dias já com estatuto de avião com janelas para o universo inteiro. Fui buscar uma foto da muralha e porta da cidade santa que foi essencial ao domingo de ramos. Tirei-a em julho passado, enquanto repousava um pouco à sombra do jardim das oliveiras. Partilho-a convosco, chamando a atenção para o facto dos túmulos que estão na sua base serem os mais caros do mundo, ao jeito de executiva do descanso eterno. Tudo porque se acredita que Deus virá um dia, ressuscitará os mortos para entrar com eles em Jerusalém, exatamente por ali, havendo quem não queira atrasar-se. E os ramos? Sempre poderemos cantá-los, como aqui, com a ajuda preciosa da Teresa Silva Carvalho: https://youtu.be/e-KrXBou_l4 Mas os ramos também poderão ser difer

Uma metáfora (azul)…

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Um rapaz azul caminha depressa, e sozinho, ao longo da praia, não querendo saber dos gestos e dos olhares da multidão que se estende ou brinca ao sol. Só lhe importa a música das ondas, e o seu andar, algo tosco e desajeitado, no dizer de quem o vê, é um baile perfeito entre ele, a água e o céu. Porque nada mais lhe assiste. Pouso o meu livro, interrompo um poema, e fico ali, por momentos até o ver passar. Não ousaria jamais pedir-lhe que interrompesse o seu mundo, para vir até aqui, à banalidade do meu, onde os gritos, o postiço dos penteados, a cor dos fatos, e o sabor artificial do morango do gelado, diluem, de uma forma quase perversa, a verdadeira essência do mar. Resolvo levantar-me e fugir da “sábia” espreguiçadeira de adulto, perseguindo-o, atento, com o olhar: a suprema ambição de um poeta é encontrar alguém capaz de o ensinar a voar. Ele para de repente, baixa-se, apanha uma concha que a maré deixou por ali, e eu resolvo imitar-lhe o gesto, apanhando uma outra,