A liberdade
À pergunta
sobre onde me encontrava no dia 25 de abril de 1974, responderei que na Escola
Masculina de Vila Viçosa. Com quase oito anos e a frequentar a segunda classe,
terei por certo feito um ditado ou uma cópia socorrendo-me de algum dos textos
do livro único por onde todos aprendíamos.
O mesmo
livro de há muitos anos, onde todos os homens eram honrados e pobres, as mulheres
domésticas de avental, e os rapazes e as raparigas, cada um para seu lado,
éramos limpinhos apesar dos remendos na farda.
Liberdade?
Não entendi
então, e com clareza, sobre o tanto que aquela palavra se ouvia numa
quinta-feira que amanhecera húmida e algo fria, para um tão avançado abril.
Entendi mais
parte o valor da palavra e do conceito, à medida que fui crescendo sem deixar
de poder ser eu.
Tinha muito
boas notas, era dos melhores alunos da turma, e era um génio, não por sê-lo de
verdade, mas porque muito pouco haveria de esperar do filho de uma modista e de
um barbeiro.
Ainda se um
dos meus pais fosse dos “ricos” da nossa terra...
A liberdade?
Divorciou o
meu destino daquele outro dos meus progenitores, que mesmo sendo alunos de
quadro de honra na instrução primária, foram aprender os ofícios que eram
próprios da sua condição. E muito agradecidos pelo avanço em relação ao
analfabetismo dos meus avós, honrados trabalhadores que, de sol a sol, ceifavam
os campos loiros do celeiro da nação.
Eu segui até
à universidade, licenciei-me, arranjei emprego por mérito, com a possibilidade
de no caminho ter lido na íntegra e sem censura, todos os livros que quis, ter
escutado os discos que o gosto me foi ditando, de ter visto os filmes sem
qualquer corte induzido pela moral e os bons costumes.
A liberdade?
Saboreei-a
sempre nas palavras ditas e escritas por vontade, sem medo ou noção de
proibido, e sem represálias.
Alguns anos
antes de eu ter nascido, o tio Zé ficará sem três dentes ao primeiro soco dado
por um dos agentes da PIDE que lhe bateu à porta, aí pelas três da madrugada.
A liberdade?
Saboreei-a e
saboreio-a todos os dias na verdade dos meus beijos dados sem o silêncio ou a
escuridão dos biombos.
Ao contrário
de antes, não é suposto travestir o desejo, deixando-nos morrer passivamente às
mãos pérfidas do bem parecer.
A liberdade?
Abraço-a
quando tenho a possibilidade de votar no partido ou na pessoa que me aprouver,
quando vou à missa com o mesmo à vontade com que os crentes de todas as
religiões o fazem no acesso aos seus atos cultos...
A liberdade?
É a aliada
do Homem inteiro, é o elo por onde a diversidade se cumpre de respeito, e a paz
pode finalmente acontecer.
A liberdade?
Não é
privilégio ou exclusivo ideológico, porque é de todos e da coerência que alinha
com a alma, qualquer gesto e todas as palavras.
A liberdade?
É muito mais
do que apenas uma madrugada ou uma canção, ainda que às vezes, e para que ela
aconteça na agonia dos livros únicos, Lisboa tenha de subir ao Carmo, trajando
cravos por sobre o vestido vermelho de uma revolução.
Agradeço a
montagem da foto à minha querida amiga Ana Patrícia de Carvalho.
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