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A mostrar mensagens de julho, 2020

Como se aprende a dizer o amor?

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Como se aprende a dizer o amor? Existirão muito mais de mil formas... Consigo imaginar o baile, a orquestra, a noite estrelada, o cheiro intenso a verão, e um rapaz de dezanove anos de fato escuro e papillon, a dançar com a sua amada, por certo adornada pelo melhor vestido. Estamos em 1960, a guerra colonial não tardará, mas na inspeção militar deste ano, que por aqui chamam “sortes”, há muitos mancebos dispensados dos quartéis. Festejam-no agora, duplamente, neste baile já marcado há meses, porque, independentemente da cor do carimbo na certidão militar, haveria de celebrar a idade adulta. A rapariga, confessadamente nervosa, terá já esquecido o veredicto de uma flor que há três anos colocou junto ao altar da Virgem. Murchou ou não, antecipando a perspetiva deste instante? Não se recorda, mas o rapaz é o mesmo de então, o de sempre, e hoje, por entre a festa, ele pede licença para namorar com ela por entre o aplauso de todas as flores do universo. Passaram ontem se

Entre o chão e o Céu

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O chão e o Céu são uma e a mesma coisa para quem não teme abrir as suas janelas, deixando entrar o sol sem reservas ou timidez. E não se opondo, ao mesmo tempo, que o ser voe e cresça para lá das paredes mais ou menos pintadas, profanos altares onde os invernos nos foram abrigando da ventania. Esta semana permiti-me sentir assim, algures entre o soalho lavado onde a solidão emerge e dói, e os horizontes “impossíveis” que vou galgando de braços abertos em voos mais ou menos tranquilos, por sobre os campanários mais altos. Nuns e noutros momentos permiti-me brincar com o sol, entoando salmos à vida, que, dispensando o canto e os versos, tomaram aleluias do gesto, da paz e do compromisso para com o sorriso e o otimismo. Gosto de sentir a vida, assim, como um rio tranquilo que às vezes, por tanto querer o mar, muito mais do que por destino, tem forçosamente de cruzar o deserto. E por força das pedras, as águas soluçam, despudoradamente, em cascatas, renovando-se, sem querer

O meu pai

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Enquanto a História foi, aos poucos, desenrolando mais uma manhã de verão, eu perdi o medo de morrer, o pudor de chorar, e, finalmente, compreendi Jerusalém. O meu pai jaz na sua cama, aqui na nossa casa, à minha frente, no ponto geograficamente intermédio entre mim e a janela que, aos poucos, traz o canto dos pássaros, o azul do céu, o motor dos carros, o bater das horas, a fala da gente. Parou de respirar pelas duas da manhã, mas a vida encerrada nestas horas que puxam o dia, são muito mais do que uma família e o seu morto fechado num corpo que arrefece, mas mantém o sorriso. Sempre ouvi dizer que a partida de um pai nos envelhece, mas descubro, agora, que não é exatamente assim, porque reencontrei o choro de rapaz, e, muito perdido na idade, o que emerge no meu peito é esta infinita paz de já não ter medo de morrer. Algures entre o horto e a porta dourada de Jerusalém, o meu pai estará a sorrir para mim, dando-me depois o braço para entrarmos, e caminharmos juntos até à

Hoje é o dia dos meus anos...

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Hoje é o dia dos meus anos, mas ao contrário do que acontecia há muito tempo, noutros verões, já não terei um fato azul para estrear, com calções e camisa a condizer. Também não terminarei o dia a contar as notas verdes de vinte escudos, com a efígie de Santo António, pensando em tudo aquilo que elas poderiam comprar. Hoje é o dia dos meus anos, mas já não terei um bolo pintado de branco, com uma muito consistente cobertura de açúcar, e com dezenas de bolinhas prateadas ao redor de umas velas coloridas. Hoje, no dia dos meus anos, em 2020, dou a mão ao meu pai que repousa na cama, tentando sossegá-lo por via desse incansável diálogo que só consegue a pele de quem se ama. Cada carro que passa no Terreiro, promove uma sombra que se projeta na parede branca do quarto, e o meu pai, às vezes, sorri, apontando para cima com o olhar. As sombras também são carros, e também são gente, tal qual as pétalas que os dias deixam cair, carregam a essência e a memória das rosas onde se