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Natal de 2019

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Éramos rapazes e raparigas do Sul, mas sempre que chegava o Natal, não nos cansávamos de acariciar o Norte, buscando nessa face mais húmida das oliveiras, o musgo viçoso para o presépio. A par com as deixas da peça de teatro que ensaiáramos afincadamente, e que emocionaria os nossos pais, nada nos preocupava mais do que os verdes campos de uma Belém imaginada a partir das cores que a chuva de outono já plantara sobre a nossa terra, que por sinal até cumpre esse destino na sua graça: Vila Viçosa. E o presépio, assim como a peça, saía sempre bem, porque ao contrário daquilo que pensávamos então, mais importante do que tudo o que se vê, é o belo sentido do amor com que tudo se faz. Este ano, as nossas mãos, que antes tratavam o musgo por tu, acariciam a pequena chávena quente do café, quando no mesmo contexto de amigos, e na nossa terra, discutimos a colocação de uma caixa de madeira que permita eliminar dois degraus da casa dos meus pais, colocando-os em segurança perante as limita

As quatro estações...

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Em modo de espera, o telefone do hospital deixa-me com as quatro estações, de Vivaldi. Poderia então ser transportado para o ano de 1996, e para um concerto, algures em Praga, numa igreja barroca onde todas as imagens pareciam ter sido tomadas por uma qualquer surpresa, com o seu ar de espanto a obrigar-nos a moderar o riso, não fosse ele perturbar a excelência da obra do músico veneziano. Mas não. A espera levou-me até ao início dos anos oitenta, e ao meu grupo de amigos, em Vila Viçosa. Chamávamo-nos “Sementes de Esperança” e organizávamos saraus onde líamos poemas de Jorge de Sena, e onde uma vez, para nos vestirmos de Outono, usámos uma velha saia de camilha de cor castanha. Descosemos um pedaço e o João Paulo enfiou por aí a cabeça, ficando com uma capa em tons de entre outubro e novembro. Vivaldi continua a soar desde o outro lado da linha... Viver é a arte de desenhar e construir as próprias estações, cumprindo o sonho, tantas vezes a partir de nada mais do q

Estes dias de amoras maduras...

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Gosto destes dias que nos põem amoras maduras sobre a mesa, ao lado de um caderno aberto e com folhas brancas para escrever. Poderemos sempre dissertar sobre a memória da dor que as silvas nos impuseram aos braços, ou então inventarmos versos de amora em ponto de açúcar, ao jeito de compota reservada para os dias de chuva que aí vêm. Confesso que sou fã incondicional da segunda perspetiva. Em dois dias consecutivos da semana que passou, tive o privilégio de abraçar dois companheiros que passaram há pouco pela sua estrada cravejada de silvas, e esses abraços, de onde emergiram sorrisos e flores, tiveram o jeito de uma mesa com toalha de linho, frutos maduros e tantos versos para o futuro. Que vão para o inferno todos os arranhões deixados pelo cancro, e que viva a vida, assim, às vezes dolorosa e incerta, sem manuais ou guias, mas sempre assente na fé e na vontade de agarrar o tempo, fazendo-o nosso por imposição, legítima, das vontades que a alma nos dita. Um abraço a

Estes “António´s” de que somos feitos…

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As salas de cinema são as únicas testemunhas do nosso sequestro pela arte (que dizem ser a sétima) de um filme. Apagam-se as luzes e lá se nos foge o tempo e o espaço, baralhando-se o tempo verbal e todos os lugares. E a gente que se deixa ir sem opor a mínima resistência. Fui ver o “Variações” na maior sala de um Centro Comercial, às 15.30 de um sábado a chamar para a praia, e só quando as luzes se voltaram a acender, restituindo-nos a idade, é que consegui perceber que éramos muitas dezenas e todos entre a “Febre (de Sábado de Manhã)” e o “Passeio (dos Alegres)”. A febre doce de uma revolução que não se cumpre no momento em que o lençol cobre os canhões e as chaimites inundadas de cravos, porque a liberdade chega em ondas, aos poucos, ao grito e ao gesto, alinhando-os com o pensamento e a vontade. O passeio triunfal dos vencedores pelas ruas que lhes oferece a vida, sem temerem mostrar qualquer cor mais “estranha” para onde lhes resvale a alma. Não batemos palmas

Esta água que nos quer...

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Estar de férias é virar as costas ao relógio, que ainda assim, manifestando total indiferença para com a nossa atitude, segue no seu ritmo normal, arrancando-nos cruelmente à infância. Sinto-o sempre de forma clara, mas muito especialmente neste “quem dá o braço a quem”, quando caminho com os meus pais a caminho da fonte do Gerês, algo indiferentes à linguagem açambarcadora dos jerricans. Fazemos o percurso cinco vezes por dia para que, chegados à base da montanha, tomemos um copo da água morna que o céu deitou sobre ela, apelando a que a enchesse com as suas melhores e maiores virtudes. E assim, cada gole de água é uma bênção e um padre nosso bebido da Terra, apelando ao céu vida e saúde. Tão íntima e eficaz se faz esta prece, que às vezes, mesmo sendo agosto, o dia emudece o sol e faz descer o céu até nós, deixando que as nuvens nos abracem de água, tal qual usa fazer com a serra. Então, no caudal do rio que corre além defronte, para lá dos odores da giesta, do medro

Uma viagem a Jerusalém...

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Quando sobre a Caparica, o avião curva para a direita, procurando Lisboa, despeço-me do sol e agradeço-lhe a viagem desta tarde: a bordo da Terra, eu segui-o desde o oriente. Sei que ao repousar finalmente na minha cama, sentirei o balançar suave do meu barco à superfície doce do Mar da Galileia, olharei bem para o alto, para as montanhas a que fé foi dando nomes e virtudes, e, quase a adormecer, talvez faça renascer na pele das mãos, a textura suave das pedras onde nasceu e ressuscitou o meu Senhor. E por entre as janelas da memória, chamarei até mim o odor das especiarias que roubei às ruas de Jerusalém, esse incenso despretensioso e improvável que acaricia o passeio dos sacrários: Cristo a caminhar pelo gesto incessante dos nossos passos. Amanhecer em Jerusalém e adormecer em Lisboa, numa viagem à procura do sol. Dos meus sete dias na Terra Santa escolhi esta foto que tirei com a Joaquina em Emaús. Somos há muito amigos no Facebook mas apenas no conhecemos pessoalmente no a

Um domingo de 2019 em Jerusalém

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Nas ruas sombrias de Jerusalém, bem cedo, de manhã, as pedras soletram todos os passos de um homem com uma cruz, exatamente quando o tempo mudou, já passaram duas vezes mil anos. Ajeito o passo e começo a andar, sentindo que a cidade é o mundo inteiro, e o homem é expressão divina no rosto de um homem que é muito mais do que apenas Ele: somos todos. I - O Homem é condenado à morte, apenas por querer ser livre e ser ele mesmo, pensando ou não de forma diferente dos demais.  II - O Homem carrega a cruz das suas noites sem luz e sem beijos, solitário nos recantos mais escuro e inóspitos das cidades. III - O Homem cai pela primeira vez, e talvez de uma balsa que trai sem pudor, a sua vontade de um porto de paz. IV - O Homem encontra a sua mãe, desempregado, sem rumo e sem poder corresponder à esperança das tardes em que ela o mimava por sobre todas as penas. V - A dor é intensa e requisita-se alguém que a alivie. Ainda existem Cirineus nas ruas de Jerusalém. VI - Uma mulher limpa o rosto

Às portas de Jerusalém

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Os pássaros virão ao fim da tarde, e escreverão em voo, salmos sobre a nossa espera, com a tinta negra das suas asas que parecem ler-nos a prece. A morte é este repouso breve, doce e anónimo no longo Vale dos Reis, aguardando Deus, que regressará para entrar triunfante pelas portas douradas, levando-nos com Ele até ao Céu. Nenhuma cidade terá tanto de Céu quanto Jerusalém, sendo também, e estranhamente, a geografia da morte dos profetas. Nas pedras gastas de Jerusalém há o eco de mil palavras de Deus, por entre o grito da sua dor, e da nossa dor, quando cravejados de balas por termos acreditado que o poder dos Homens partilha o trono com Deus. É sábado em Jerusalém e eu visito o túmulo do Rei David depois de colocar a Kipá sobre a cabeça, sinalizando que Deus estará sempre sobre mim. Sobre mim e sobre a minha espera, que todos somos passageiros sentados nos vales ao redor de Jerusalém. Há homens que rezam ali, na Sinagoga, numa língua tão estranha, quanto os gestos que an

Presépios e árvores de Natal...

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As pessoas que persistem são árvores frondosas que nos abraçam de sombra perfumada nos jardins da memória. De manhã procurei Aristides de Sousa Mendes em Jerusalém, nos jardins do Museu do Holocausto, e encontrei-o exatamente no dia em que passam 134 anos sobre o seu nascimento. É um pinheiro frondoso. De tarde , e quando o sol já se propunha deixar Belém, ajoelhei-me na gruta da natividade para saudar o Jesus menino, seguindo a geografia da fé e do Natal. Há momentos maiores do que nós, e ali eu fui muito mais do que apenas eu: os meus pais, os meus avós, o meu irmão, os amigos todos... A vida passou ali em 10 segundos, e com ela todos aqueles de quem sou feito. Mas entre Aristides e a natividade de Jesus, reflectindo o mundo, há muros e uma fronteira com gente armada.  No presépio do século XXI exige-se passaporte, e a crueldade mata a poesia das estrelas que definem os caminhos da liberdade. Estamos sentados no hotel em Jerusalém, da mesma forma que antes em Vila Viçosa,

Jerusalém...

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Subirei para Jerusalém, cidade santa, um dia, ao cair da tarde, levando comigo, em braçadas toscas mas intensas, as flores dos anos todos que vivi. Trarei preso aos pés o pó de mil cidades e outros tantos caminhos, e na boca, a prece e os salmos a um só Deus, ainda que com tantas faces. Cruzarei a porta de Damasco e sentar-me-ei sossegado numa pedra com rosto de degrau, mas essência de altar, esperarei a lua, cruzarei o cantar de todos os galos com um sim atado aos lábios, e ao sentir Cristo passar, atarei o pó dos meus passos aos Seus, caminhando com Ele até ressuscitar.  Por entre todas as flores...

Donos do tempo...

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Recordo-me bem do Natal de 1983. Évora é uma cidade que Dezembro quase sempre encontra fria, mas nesse ano, até a água que escorria tímida das torneiras da velha Quinta de Santo António parecia empenhada em congelar-nos os dentes na hora de os lavarmos, muito cedo, pela manhã. Poderia partilhar convosco mil detalhes do que então fazíamos, mas nada seria tão justo quanto a expressão do nosso propósito: procurarmos o tempo para o pormos a jeito de lhe chamarmos nosso. Tínhamos fé, rezávamos juntos, e prometíamos ser felizes, arrastando à força as primaveras para cima de qualquer tempo frio. Partimos... E hoje, por um feliz e imenso “acaso” traçado pela agenda de amigos comuns, vimo-nos juntos a bordo de um barco no Mar da Galileia, em Tiberíades, Israel. Desses dias de Dezembro estou eu, a Isabel, a Mina, a Manuela, o Zé e o Padre Manel Zé, com a felicíssima coincidência de a Isabel celebrar hoje 50 anos. As águas doces deste mar são calmas numa manhã quase sem brisa, com

Olhando-me ao espelho...

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Olhando-me ao espelho numa manhã de julho parecida com aquela em que nasci em Vila Viçosa, mas por certo menos quente, não me vejo alto nem baixo, vejo-me mais para o gordo, com uma cabeça que a boina confirma avantajada, e vejo-me com uma barriga proeminente. Estou a sorrir, como gosto de ser, sentindo que a alma vai em contramão na rota da idade que o rosto não desmente. Porque se é verdade que tenho rugas e a barba de branco tingida, sinto cada vez mais vontade de brincar, e tenho menos certezas sobre tudo, e até sobre a própria vida. Tenho fé em Deus, que é algo que não se explica, e confesso rezar muitas vezes na rua ao longo do dia, sentindo que Deus prefere morar na vida de quem passa por mim, muito mais do que nos recantos obscuros de uma sacristia. Às vezes sou de esquerda, outras vezes de direita, porque sou sempre daquilo que a consciência me dita, recusando-me a ser a bengala ideológica de uma voz sem cérebro e sem alma, que, de um modo cego, apenas grita. Sou

A amnésia é o A de Portugal…

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Lado a lado com Pátria, Ousadia, Revolução, Trabalho, União, Genialidade e Liberdade, a Amnésia é, definitivamente o A de Portugal. Será de há muito evidente tal constatação, que até D. João I, algures entre os séculos XIV e XV, recebeu como cognome “O de boa memória”, talvez por ter sido uma honrosa exceção. Numa terra onde a vaidade se engraxa todos os dias pelo resgate claro, e aparentemente lúcido, das virtudes e feitos seletiva e estrategicamente lembrados e hiperbolizados até ao estatuto de heroicos, a amnésia cumpre a missão de degredo da incompetência e da ilicitude, para lá da função de “Deus me valha porque eu até nem tenho pressa”. Sem o pudor, rasgado há muito em conjunto com os “mantos diáfanos da fantasia”, os políticos e gestores passam pelas comissões de inquérito aos negócios ruinosos da banca, não se recordando de nada que os possa comprometer, fazendo de cada “não me lembro”, uma faca de gume afilado até à dignidade dos contribuintes honestos.

Renato

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É meio dia em Barcelona e acabei de aterrar vindo de Lisboa. Em muitas visitas, esta é a primeira vez que encontro a cidade coberta por um manto denso de nuvens, e chove copiosamente. Vá lá saber-se porque razão choram as cidades… A foto acima publiquei-a há precisamente um ano, a 9 de junho de 2018, com um texto a que chamei “Quanto tempo existe no espaço de uma hora”, em que relatei a minha ida ao Teatro de Cascais para assistir a uma revista protagonizada pelos “Cascotas”, um grupo sénior onde o meu colega e amigo Renato Borges e a sua queridíssima mulher, a Margarida, tinham lugar de destaque. Tirámos a foto no final do espetáculo. Fomos colegas na Pfizer durante muitos anos, trabalhámos juntos em muitos e grandes projetos, visitámos muitas cidades, mas agora encontrávamo-nos quando eu publicava um livro ou existia algum evento especial, para além, é claro, das noites europeias no nosso Estádio da Luz. O Renato estava algo fragilizado, o Benfica não entusiasmava, e por iss

PORTUGAL

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Vivemos entre a quietude e um desassossego quase sempre feito de saudade, e por tanto sonhar-nos caravela, e insistirmos navegar, tornámo-nos naquilo que somos hoje: o próprio mar. Acenamos ao Céu no meio dia de Fátima, escrevemos o futuro nas linhas que o azeite inventa entre nós e o horizonte, nas terras do sul; e a norte, multiplicamos o sol reinventado o chão em degraus de vinho que sobem desde o rio, por onde subimos com fé contrariando a morte. Dirão que somos uma pequena praia e um ínfimo instante no tempo inteiro do universo, mas o nosso espaço é o infinito que o olhar nos apregoa, e a nossa História tem dimensão de eternidade, mesmo cabendo num só poema de Camões ou de Pessoa. Acordamos a alma à noite, sob um xaile de lua, e o fado que se escuta põe na mesma rima, a festa e as dores, porque só somando as duas se dizem os amores. Mudamos o destino com cravos que colhemos da raiz da liberdade, e por uma nova madrugada somos heróis, imprevisíveis, poetas, pedre

Construir cidades...

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Fosse em casa com peças da Lego, carrinhos miniatura ou casas de cartão, fosse na rua com pedras e areia, nós brincámos a construir cidades por onde depois nunca tínhamos tempo para caminha e “viver”. As mães chamavam-nos para jantar e a brincadeira acabava ali, sendo que no outro dia, algo novo e mais interessante nos esperava para passarmos o tempo. Certo, qualquer que fosse o contexto em que nos encontrávamos nas férias de verão, era matarmos a sede nos bebedouros de mármore, partilhando-os com os pardais e todos os outros pássaros. Na semana que passou fui apresentar o meu livro “As bolachas mágicas da avó Inácia” a cerca de 400 crianças de uma escola em Algés, e uma delas, ao formular uma questão, referiu: - “A minha avó, que é idosa como o Francisco e também gosta de fazer bolachas...” Sorri-me para dentro, porque as crianças não têm filtros e todos aqueles que temos barbas e cabelos brancos... “Se deixasses crescer um pouco mais a barba poderias se

Morto nos braços de si mesmo...

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Eu nasci para percorrer sozinho todas as cidades do mundo, e no silêncio, rua a rua, vou-me diluindo na imensidão do universo, até à dimensão ínfima que me permite cruzar e entender todos os castelos, até mesmo os da diferença que aparenta ser mais impenetrável e impossível. Em modo pequeno entra-se e entende-se melhor o coração dos outros. Cruzo as ruas de Lyon até à margem do rio Saône e à estátua de um homem que caminha transportando-se a si próprio, morto, nos seus braços. Eu nasci para percorrer sozinho todas as cidades do mundo, e no silêncio, vou sentindo o quanto de mim sobrevive e respira, sentindo ao mesmo tempo o peso daquilo que deixei morrer sem pranto e sem dor, quando me tornei indiferente ao espaço e ao tempo. Quem não se dilui na dimensão do universo, toma o “importante” estatuto de uma montanha de pedra que jamais saberá o que é o amor. E um homem sem amor é um homem que jaz nos braços de si mesmo, mesmo que ainda consiga caminhar.

Ser do Benfica...

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Ser do Benfica é viver esta festa de olharmos para cima, e repararmos que não há nada nem ninguém entre nós o céu. Corremos então num grito pela cidade, e às duas por três, parece até que o Tejo se vestiu de encarnado e pôs papoilas no cabelo para ir passear até ao Marquês. Somos feitos de povo e somos orgulhosamente povo. Os nossos pés moram em Carnide, num bairro de Lisboa, a capital, mas o Homem é do tamanho do horizonte onde a alma o leva, e nós, definitivamente, temos dimensão de infinito num corpo que é do tamanho de Portugal. Não importa quando nascemos, e se o fizemos antes ou depois de alguém, na nossa idade cabe o tempo todo, e no golo de um segundo apenas conseguimos sempre provar a eternidade. Sim, somos lampiões acendidos pela força de lutar, porque mesmo que nos roubem o dia ou a noite, nós reinventaremos sempre um sol e o luar. E sim, por mais que o nosso fado se enleie no devaneio de outras canções, voltaremos sempre à essência do sangue que nos percorr

Desabafos nas margens de um rio sossegado, com um copo de vinho na mão, e na companhia de um mês de maio que ainda ensaia a primavera…

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A prudência impõe telhados aos beijos, privando-os do céu e do luar. E os telhados, tal qual o chão firme, são os maiores obstáculos para quem ambiciona crescer para lá do presente de um qualquer instante. A vaidade impõe a aparência de capas sobre capas, para que, tal como acontece com as cebolas, alguém acabe a chorar perante o gosto amargo e pobre da essência real de que não cuidámos e que guardamos dentro. A cegueira ideológica, corporativa, religiosa, partidária... mais cedo ou mais tarde acaba por nos reciclar em autoclismos, com a heroicidade e a inteligência do pensamento a serem substituídas por descargas de água sobre os dejetos arremessados por comportamentos imbecis para os quais temos trancados os olhares e o sentido crítico. As operações plásticas disfarçam a idade, mas assaltam-nos a história, roubando-nos a possibilidade de nos rirmos com a vida e a cara toda. As injustiças provocam úlceras quando acumuladas no estômago, os joelhos em reverência, apoiados

Mãe

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Os bem mais de quarenta anos que separam estas duas fotos foram apenas um beijo com tanto de breve como de completo e intenso. Sim mãe, sob o sorriso cúmplice do pai, o tempo entre nós os três será sempre esse beijo, que apesar de ter a vida inteira, de tão perfeito sabe a breve. Nós somos feitos de ti na essência e na atitude, e alimentamo-nos do puro querer amniótico que persiste e extravasa o tempo escorrendo de todos os teus sentidos, das mãos, das palavras perfeitas... O parto cumpriu tão só o impulso de te olharmos de frente e podermos acariciar-te a face. Por muito que a idade nos persiga, contigo ao lado nós despimos os fatos e as cãs, regressando aos calções feitos do tecido que sobrava dos fatos do pai, para irmos a correr ter com os amigos e passarmos a tarde a brincar. Porque o teu amor será sempre a eternidade, e a eternidade é um beijo imenso e inteiro.   (Obrigado ao meu querido amigo José Manuel Marques pela excelente foto inspirada naquela que

O vento forte nas pontes do sul…

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Desde Vila Viçosa, regresso a Lisboa ao fim da tarde de domingo de Páscoa, e nos placards da autoestrada, a mensagem é clara: “Precaução: vento forte”... Sempre acreditei que quando crescesse deixaria de gostar de brincar com o pôr-do-sol. Pensamos tantas coisas destas a nosso respeito, sem nos darmos conta de que elas são tão intrinsecamente da genética da alma, e não da idade ou do tempo, que subsistiriam mesmo que vivêssemos mil anos. Na sexta-feira santa andei a brincar com o pôr-do-sol ali para os lados do palácio, e segui a frontaria caiada da porta do nó, até ao portão do meu antigo liceu. Não encontrei ninguém, mas o espaço e as pedras das ruas têm o condão de guardar a fala, o riso e o choro da gente, e apesar de quase ser hora de enterro do Senhor, ressuscitei mil lembranças que guardei nos bolsos fundos da memória. Nós temos esse condão de cruzar a nossa genética com a genética das ruas, e por mais camadas de cal que imponham às paredes das casas, a nossa silhu

O meu Deus...

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O meu Deus ressuscita, tal qual o canto das ribeiras numa tarde de chuva, sempre que eu ofereço ao tempo adverso, o meu rumo e os meus aromas, fazendo do inócuo silêncio, uma canção perfeita que me espelha na rima de cada verso. O meu Deus foge então dos sacrários e dos altares, para caminhar pelas ruas no peito da gente, espreitando pelo riso e pela esperança que são próprios de quem vive contente. O meu Deus trocou os mantos de veludo pelos gestos talhados pela vontade, trocou a sumptuosidade dos templos pelas vielas, rejeitou a hipocrisia, trocando-a pelos beijos de amor, que o são de verdade. O meu Deus passou pela cruz, mas é a alegria que se abraça num sepulcro vazio. O meu Deus, todos os dias, e não só nas manhãs de Páscoa, é a minha vida inteira a repousar num abraço onde não se sente o frio.  

Na aparência de estar só...

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Na aparência de estar só, o silêncio nunca é a casa de quem escreve. Há gente que canta, que conversa connosco durante muitas horas, há gente que grita, e até há gente que, preparada para tomar corpo de letra, ressuscita. Quando se escreve constroem-se novas moradas ou reabilita-se a antiga, sempre na coerência de um sonho qualquer que nos persiga, e quem escreve, mais do que manchas de tinta, tem pedaços de terra presos à mão: ele é um agricultor que se empenha em mondar os seus parágrafos, para que não persiste mais nada, para lá das palavras que possam ser pão. Quem escreve tem o privilégio de baralhar os dias, as horas, as estações... não sendo raro acordar em dezembro para uma manhã de verão, naquilo que poderá soar estranho para quem não souber decifrar a linguagem imprevista do coração. O escritor tem face de esquizofrénico, de mendigo, de travesti, de marinheiro, de inconsequente, de herói, de vagabundo... Mas que importância tem isso, se apenas o invisível e univ

Estes dias sem botox…

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A meio de uma tarde de primavera, e vindo de norte para sul, cruzei no outro dia, o vale do rio Douro, comprovando pela milésima vez, que esta é uma das rugas mais extraordinárias com que o tempo marcou a face e a idade da Terra. Horas antes, tinha entrado numa igreja em Vila Real, e tinha-me deparado com a azáfama de duas senhoras que cobriam com panos, duas imagens de santos já colocadas nos andores. Correndo o risco de ferir a sensibilidade dos meus amigos mais ligados à teologia, permitam-me que vos confesse não ser particular apreciador do tempo da quaresma. Primeiro porque não gosto dos dias que nos afastam das flores, e depois, porque nunca será no deserto que alguém se poderá encontrar: eu sou aquilo que semeio no coração e na vida dos outros, sendo neles que me revejo e, de caminho, encontro a Deus. Para além de que esta coisa do silêncio e do ruído é tão relativa… A cruzar o Douro lembrei-me, inevitavelmente, de Torga e de São Leonardo de Galafura: “ É lentam