Um domingo de 2019 em Jerusalém
Nas ruas sombrias de Jerusalém, bem cedo, de manhã, as pedras soletram todos os passos de um homem com uma cruz, exatamente quando o tempo mudou, já passaram duas vezes mil anos.
Ajeito o passo e começo a andar, sentindo que a cidade é o mundo inteiro, e o homem é expressão divina no rosto de um homem que é muito mais do que apenas Ele: somos todos.
I - O Homem é condenado à morte, apenas por querer ser livre e ser ele mesmo, pensando ou não de forma diferente dos demais.
II - O Homem carrega a cruz das suas noites sem luz e sem beijos, solitário nos recantos mais escuro e inóspitos das cidades.
III - O Homem cai pela primeira vez, e talvez de uma balsa que trai sem pudor, a sua vontade de um porto de paz.
IV - O Homem encontra a sua mãe, desempregado, sem rumo e sem poder corresponder à esperança das tardes em que ela o mimava por sobre todas as penas.
V - A dor é intensa e requisita-se alguém que a alivie. Ainda existem Cirineus nas ruas de Jerusalém.
VI - Uma mulher limpa o rosto do Homem que passa, e que é afinal ela própria, em sua casa, nas madrugadas violentas de um inferno que deveria ser amor.
VII - O Homem cai pela segunda vez, e agora, do cimo de um muro que alguém resolveu construir no fundo da sua rua.
VIII - O Homem encontra as mulheres, encontrando-se dorido no seu choro e no seu lamento pelo desprezo e pela discriminação.
IX - O Homem cai pela terceira vez, do cimo da ilusão de um político que lhe vendeu pedras por pão.
X - O Homem é despojado das suas vestes para morrer de frio no recanto de um inverno qualquer.
XI - O Homem é pregado na cruz por todos os que o exploram e desprezam a sua dignidade.
XII - O Homem morre na cruz ao entardecer, com uma bala que alguém disparou em nome da prepotência da fé, da etnia, da orientação sexual, do género...
XIII - O Homem é descido da cruz perante o cinismo de quem o despreza todos os dias.
XIV - O Homem é sepultado sob a mordaça da sua liberdade e da sua voz. E a pedra que rola sobre o túmulo tem a mão dos poderosos do universo.
Cheira a caril nas ruas de Jerusalém que estão ao redor do Santo Sepulcro. Tantos Homens e tão diferentes por aqui, mas todos dentro da história de um Homem onde cabe toda a humanidade.
Volto a ajeitar o passo.
Hoje é domingo, e restará sempre o domingo para o Homem ressuscitar, voando sobre a cidade santa, não por ter asas, mas por ninguém poder sepultar a sua capacidade de sonhar.
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