Crescer sem “matar” a Cinderela…


A Maria (chamemos-lhe assim) era minha companheira na Escola Primária de Vila Viçosa, e acreditava que os reis e as rainhas eram seres tão especiais que nem tinham de urinar ou defecar.
Sempre que a contrariávamos, chamando à liça as grandes panelas de cobre existentes na cozinha do Paço, e o óbvio prenúncio da imensa quantidade de comida ingerida pelas reais criaturas, e que seria objeto de um processo digestivo, ela defendia-se dizendo que ao visitar o famoso Paço tinha visto todos os humanos e normais recantos, à exceção de casas de banho.
Estávamos no início dos anos setenta, tínhamos seis ou sete anos, e era tão fácil acreditar nas lendas e nas histórias que os avós nos contavam ao serão, e que, despudoradamente nos treinavam na arte de misturar a realidade com a mais inusitada ficção.
Nesse tempo desconhecíamos o impossível, e ainda nem sequer desconfiávamos das dores implícitas ao crescimento. Talvez só ali pelos catorze anos, nos tenhamos começado a aperceber de tal.
A primeira paixão, platónica (pois claro) corroeu-me as carnes e quase me fez acreditar que tinha enlouquecido: o pensamento já não era meu, e entre o desejo e a ausência morava uma dor que me pôs, inteiro, a sofrer.
Depois desmoronou-se a convicção da imortalidade daqueles que amamos, e por entre o choro dos nossos pais, que acreditámos jamais serem capazes de tal “fraqueza”, sentimos a dor do silêncio na casa dos avós.
No dia em que os bombeiros vieram buscar o corpo da avó Francisca, e o tiraram pela janela da Rua do Poço, eu aprendi, por experiência, que cada um que parte, nos arranca um pedaço e leva-o para o Céu, deixando-nos por aqui mais tristes e mais pequenos.
Aprendemos também, mais tarde, como é difícil procurar o nosso caminho por entre um emaranhado de estradas e ruas, tantas vezes sem mapas, e muito menos GPS, quando a idade nos dissolve as paredes e os telhados da casa dos pais e nos expõe ao vento e ao frio.
A primeira desilusão de amor explica-nos como é terrível morrer, ficando, simultaneamente, vivo e consciente, a sentir o desconforto supremo do corpo que se desfaz depois de abandonado pela alma.
Em Maio, enquanto as cerejas já se espreguiçam rubras e maduras ao sol da manhã, o sabugueiro ainda saboreia o alvo tom das suas flores. De flores e de frutos se faz o campo, e talvez essa seja uma indicação fundamental para seguirmos sem hesitar: maduros, mas também com flor, crescidos mas sem nos despojarmos de tudo aquilo que nos faça sonhar.
Às vezes… muitas vezes, disfarço as rugas com uma gargalhada, invento um poema que fala de uma lua de lata, e falo de uma cidade de beijos. Outras vezes escolho um destino, compro um bilhete de avião, de comboio, ou até de elétrico, e parto sem medo e com tempo, a descobrir as ruas das cidades de que aprendi a gostar através dos livros que li.
As dores?
Levo-as comigo mas sem me focar nelas, tentando que a magia que persiste, as suplante em dimensão e em arte.
O dia da criança deve ser celebrado e vivido por todos, todos os dias e não só a 1 de Junho. Por mim, por mais maduro e realista que a vida me faça, jamais me ouvirão contar a história da Cinderela assumindo que a dita princesa tinha as suas pausas para fazer cocó.
Deixemos falar as flores que trazemos atadas aos dedos.

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