O barco e o tempo...




Não existe nada mais eficaz para nos fazer sentir velhos do que a fragilidade que o tempo impõe aos nossos pais. Já não brincamos sossegados na parte do barco que não dói, e somos nós quem rema na proa contra ventos de solidão, às vezes sentindo que o olhar, por ter tanto sal, já foi inteiramente tomado pelo próprio mar.
A nós, por termos sorte, valem-nos então os mestres improváveis e as lições inesperadas que os dias vão trazendo até à barcaça.
O meu sobrinho Luís guarda em si um mundo muito próprio onde os bonecos, durante a noite, falam uns com os outros debaixo do edredão.
Porque todos os bonecos que desenha merecem ter corpo a três dimensões, pede à minha mãe, a sua avó Inácia, que os costure no tamanho que ele idealizou, sendo sempre exigente e rigoroso, rejeitando algum que não cumpra os seus preceitos estéticos.
Nós somos do tamanho do sonho que fomos desenhando na intimidade da alma, exigindo-nos a vida que reunamos as condições para o concretizar na sua exata medida.
E os avós, celebrados todos os dias pela presença ou pela memória, são os melhores aliados dos nossos sonhos.
Já sem os nossos avós mas cumprindo a sua herança, se nos dói este barco, desenharemos um outro com uma ergonometria que nos ajude a respirar melhor, e até a cantarolar aqui e ali, ao jeito dos marinheiros de Veneza, cidade onde segundo Thomas Mann, se morre perseguindo a indiscutível beleza da juventude.
A esperança é mestra da criatividade, e juntas destroem aquilo que de menos bom o tempo nos traga.
E afinal de contas, os nossos beijos preferidos persistem à espera na parte da barcaça que não dói, na face cansada mas perfeita de quem antes remava.

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