Liberdade 2021
Quando eu nasci, em julho de 1966, a minha terra dividia-se entre ricos e pobres. Os primeiros, por serem, em geral, “generosos” na esmola e muito chegados ao poder vigente, recebiam a designação de “Boas Famílias”, os segundos só poderiam aspirar ao título de “Boas Pessoas”, se conseguissem ser submissos.
Dizia-se que a
moral contava muito para estas apreciações, sem ter em conta que os adultérios,
os filhos ilegítimos, e outros vícios de alcovas privadas, eram transversais a
uns e a outros, sendo bem melhor camuflados por quem tinha posses para adquirir
cortinados de veludo.
Havia o
pensamento, esse tão incómodo pensamento, e essa revolta dos pobres, “más
pessoas”, a clamarem por justiça e liberdade, mas então, invariavelmente pela
calada da noite, surgiam uns senhores vestidos de negro que esmurravam a
ousadia sob a luz ténue dos candeeiros de petróleo.
E num dia de
primavera chegou a liberdade. Diga-se, assumida e orgulhosamente, a 25 de
abril.
Os ricos
chamaram-lhe inquietação e desordem, enquanto nós, os pobres, celebrávamos a
igualdade e a justiça.
Ao contrário
dos meus pais, que eram tão bons ou melhores alunos do que eu, pude continuar a
estudar, acabando por ganhar prémios de mérito aos filhos e filhas daqueles a
quem as minhas avós tinham lavado escadas por dez tostões e alguns bocados de
pão duro.
Rebeldia.
Reuníamo-nos em
grupos para falar de futuro e traçá-lo dando forma à ambição e ao pensamento.
A celebrarmos a
fé e a liberdade.
Ainda
subsistiam vozes a reclamarem por já não ser possível fazer a caridade,
oferecendo camisolas no Natal, porque os pobrezinhos até já tinham televisão ou
sofás.
“Quim, não te
iludas porque os teus pais jamais conseguirão suportar financeiramente a tua
ida para a faculdade. Isso é para outra gente”. Recebi um dia esta medalha de
uma senhora que ainda hoje faz a genuflexão diante do sacrário.
Mas a liberdade
venceu, derrubou paredes, e no ano em que eu me licenciei até caiu o muro de
Berlim.
Mandela saiu da
prisão num domingo à tarde, as mulheres sacudiram os grilhões e chegaram-se,
merecidamente, ao sítio onde estamos sentados, nós, os homens. Os corações
puderam dizer quem verdadeiramente amavam, sem forma e sem género.
Continuam a
existir boas e más pessoas, mas o critério que as define, e que no passado
também deveria ter sido usado, já é outro: ter ou não ter valores de alma, que
não monetários, ser ou não ser honesto.
Persistem,
afortunadamente, as diferenças, mas a “regra” não é eliminar os demais, muito
antes pelo contrário, mas integrar e incluir, oferecendo ao mundo as diferentes
perspetivas de todas as cores.
Sou católico, e
sempre fui, vivendo a fé como um motor que se gera e alimenta por dentro,
orgulhando-me de ler e sentir essa tolerância, esse encontro e esse amor que
não dispensa ninguém, mas que a todos abraça.
O Evangelho de
Nosso Senhor Jesus Cristo é, e será sempre, a minha “escola” de tolerância,
igualdade, honestidade...
Mas sendo católico,
deverei confessar que já rezei em sinagogas, mesquitas... sentindo sempre que
estava na “casa” do meu, e do único Deus.
E há a
liberdade, tão sagrada quanto o pão.
Poderão
acusar-me, neste meu texto que já vai longo, de não saber perdoar, ressuscitando
aqui velhos pecados alheios, sobrepondo-os de forma leviana, aos muitos que eu
terei. Poderão.
Também poderão
dizer que sou injusto porque entre os “ricos” desse tempo em que eu nasci
existiam excelentes pessoas, e entre os pobres, gente execrável. Também é
verdade, mas não fui eu quem deu esta dica da generalização.
Mas não, confesso,
não guardo rancores, mas achei, e acho, que revisitar o passado nos poderá
inspirar para um melhor futuro, evitando que o ciclo do tempo nos faça retornar
às dores passadas.
A pedagogia e a
lição da História.
Votos de um
muito feliz 2021… e que persista a liberdade.
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