Tanta vida, a minha voz…
A
memória veste-me uns calções curtos do tecido castanho que sobrou de um fato do
meu pai, e senta-me num banco redondo de madeira encostado à parede por detrás
do balcão. A sala rectangular tem livros arrumados nas estantes das suas quatro
paredes, e tem duas portas abertas para a rua que arde por bênção da cal e do
sol com que o verão beija o Alentejo…
Vila
Viçosa. Eu terei talvez uns seis anos, e os livros que vou lendo devagar são as
portas para onde se pode de facto espreitar.
Aquela
luz lá fora que nos encandeia e que nos empurra para dentro e para o aconchego da
alma…
Deixo
a memória escorregar depois até à tarde de Dezembro de um ano qualquer da
década de oitenta do século que já passou. Cheguei ontem de Lisboa no Expresso que
chegou ao Rossio, e vim passar o Natal nas férias da Faculdade. O descanso das
Químicas na mesma sala; e eu não me esqueci do lugar de cada uma das “portas”.
Sugiro
presentes, faço embrulhos, trocos… e quando não há clientes encosto-me à parte
lateral do balção do lado direito de quem entra, virando costa à Banda
Desenhada do Asterix e do Michel Vaillant , deixando que a
conversa flua e voe para onde se vai espraiando a vida.
Não
há palavras proibidas nos instantes em que aprendemos a liberdade, e por entre
cravos encarnados ou de qualquer outra cor, o olhar doce de quem nos ama é o
espelho onde sempre nos vemos bem e confortáveis na identidade que não trai a
essência de que somos feitos.
Tão
pouca gente me olhou ou olha assim.
E
num dia de Outono, quando os medronhos do Castelo já sorriam maduros e o sol do
Alentejo nos enganava disfarçando a geada, a saudade sobrepôs-se às palavras,
subitamente, e sem tempo sequer para um beijo fugaz.
Uma
partida sem medo, porque só teme a morte quem sente não ter a vida em dia.
A
minha querida amiga Joana Ruivo faria hoje 100 anos e eu contínuo sem saber
quanto lhe devo do melhor que existe em mim.
Tanta
vida, a minha voz…
Às
vezes nos dias de me reinventar, encosto-me por instantes na lateral de um
velho balcão de madeira, baralho-me propositadamente na idade e deixo-me ir
pelo seu olhar doce, para qualquer lado mas sempre por mim e pela liberdade.
Que
nunca nada daquilo que é meu possa ficar por fazer.
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