Crónica dos dias do cerco
Começo por vos advertir para o facto desta crónica ser um pouco ao estilo “carapaus
fritos com molho de natas”, mas estes dias vão algo estranhos, baralhando-nos os
conceitos e ferindo-nos os impossíveis.
Ninguém nos tinha dito, e por isso estamos nós a aprender agora, que
existem primaveras inacessíveis, mesmo que as vejamos, perversas, a
espreguiçarem-se bem para lá das janelas.
Bem gostaria eu de poder ir brincar para o jardim em frente à minha casa...
Mas não.
Estou em Vila Viçosa em teletrabalho e em funções de escudeiro fiel dos
meus progenitores, de 77 e 79 anos.
Não vá o Covid-19 reparar que existimos, ficamos em casa, e só eu é que
saio de vez em quando, para fazer alguma compra, na minha terra tão estranhamente
deserta.
E aqui um parêntesis para dizer aos meus conterrâneos que a nossa terra é
linda de monumentos, praças e casas, mas padece-me a falta dos vossos olhares.
Fazem-me muita falta porque são o melhor de cá.
Neste modo “aprisionado” de estar, a minha mãe é a mais irrequieta e a mais
difícil de convencer a ficar por casa. A crueldade dos números que os
telejornais foram mostrando deram-me algum apoio na causa, mas o regresso da
Cristina Ferreira à antena da SIC, e a forma como ela, muito bem, manda estar
em casa, foi decisivo para a mudança de atitude da minha progenitora.
Eu como profeta, cá em casa, e definitivamente, perco em toda a linha para
a Tininha da Malveira.
É um facto.
Por falar em televisão, ao fim da tarde vejo o Preço Certo na companhia do
meu pai, e não é que até já acho alguma graça àquilo?
Preocupante?
Quiçá.
Uma coisa é certa: reconciliei os meus pais com o meu i-Phone.
Ontem celebrámos virtualmente o aniversário da minha amiga Natália, e
reparo que a partir desse momento até já lhe devotam algum carinho e admiração.
Como temos uma varanda, o meu momento mais íntimo com a primavera ocorre no
final das refeições ao sacudir a toalha para um pequeno telhado. Os pintassilgos
já estão à espera das migalhas.
É um privilégio ter podido voltar a brincar com os pássaros.
Trabalho, escrevo, leio e converso muito com os meus companheiros de
“cela”, numa existência algo estranha que toma esperança do facto dos beijos e
abraços, lá fora, estarem apenas adormecidos.
Um dia voltaremos para eles.
O meu banco tranquiliza-me todos os dias, provando estar vivo na sua
genética de... vampiro, ao enviar-me soluções de crédito imediato.
Tão queridos e tão cínicos.
Para vos dizer a verdade, a mim o que me tranquiliza mesmo, aqui nesta
trincheira estranha e inóspita, é saber que estamos todos juntos, e somos todos
contra o Covid.
Por isso, por estes dias, não ligo e desprezo as mensagens de ateus contra
as religiões, seja a minha ou outra, as caneladas futebolísticas, os ataques
políticos, a mesquinhez da crítica barata, o norte e o sul, o interior ou
não... e a prova disto, é que eu, que nunca votei em António Costa, e para ser
franco não penso vir a votar, estou com ele e com a sua equipa, porque é com
eles que temos de vencer o “bicho”.
O resto logo se discutirá quando tudo passar. Porque irá passar.
Hoje iremos jantar pizza, depois de termos almoçado uma belíssima sopa de
cação, e é claro que à mesa falaremos daquela vez em que chegámos os três a
Veneza e apanhámos um táxi barco. Era tão grande a minha preocupação de não os
deixar cair para o canal, que, distraído, quase ia morrendo com uma cabeçada no
tejadilho da dita embarcação.
Quer queiramos, quer não, o mundo que fomos colhendo, trazemo-lo dentro,
mesmo quando nos fecham, assim, em casa, e eu, entre versos, juro que ainda
farei um remoinho de papel para o pôr a rodar junto ao sítio onde brinco com os
pintassilgos.
Como se fosse o meu mundo inteiro e colorido.
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