Fátima e uma noite vazia mas inteira
Quando era
rapaz íamos a Fátima de autocarro, com as amigas e os amigos, mais os pais
deles.
Na noite que
antecedia a partida, as nossas mães mal dormiam porque havia que terminar de
fritar os rissóis de pescada, cozer as empadas de galinha, tostar o arroz no
forno, para além de cuidar da arrumação de todas as iguarias na geleira.
Ao contrário
do tempo das nossas mães, que era escasso, o nosso mal se movia, e nós também
dormíamos mal, mas era com aquela ansiedade de quem ainda vê longe a manhã.
Partíamos
antes do sol nascer, e ali por alturas de Ponte de Sôr fazia-se uma paragem
técnico sanitária para alívio das bexigas, com o género como critério e a
estrada como fronteira.
Rezávamos e
cantávamos durante a viagem, socorrendo-nos da Playlist que a Zinha tinha
elaborado na semana anterior.
Também
existia sempre alguém que enjoava por força das curvas da estrada, mas como não
era doença de perigo, a coisa até servia para distrair.
Chegávamos a
Fátima...
Ficávamos
juntos, repartíamos o farnel em longas mesas improvisadas, bebíamos Sumol,
alugávamos quartos numa pensão qualquer e depois íamos rezar... até ao almoço
do outro dia.
Talvez nunca
tenhamos percebido muito bem porque gostávamos tanto de estar ali, sem que a
busca de tal resposta nos ocupasse muito a quota de preocupações.
Era uma paz
imensa em dias de família e amigos, à sombra de Deus, no vale fecundo onde correm
ribeiras frondosas e o mel silvestre nos preenche de tal forma, que nunca
chegamos a sentir fome.
Na noite de
12 de maio, e no silêncio de Fátima com que o D António Marto deu mil a zero à
Isabel Camarinha da CGTP, aqui sentado em casa com os meus pais, senti que o
recinto do santuário se tinha finalmente rendido à evidência, assumindo ser
demasiado pequeno para os tantos que somos Fátima, e de Fátima.
Portugal não
cabe, definitivamente, ali.
Porque a paz
dos vales fecundos e da sombra de Deus está onde nós estivermos, viaja
connosco, e, naquela altura em que eu era rapaz, até viajava de autocarro entre
as lancheiras e a playlist da Zinha.
É claro que
por entre esse silêncio reouvi o nosso canto, as nossas gargalhadas, o rosto
dos que já partiram... com saudade, estão eles e todas as nossas idades, tatuados
na memória de um lugar que terá sempre a dimensão da alma de quem o procura,
caminhando dia e noite, sem temer os pés.
Uma alma
lusitana, imensa como o mar, porque infinitamente cheia de Deus.
O “vazio” de
Fátima foi apenas uma pausa para que a sentíssemos imensa dentro de nós.
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