Quanto mais longe, maior se nos faz o beijo…


 A saudade faz-se destes lugares e minutos agora vazios, coordenadas nascidas perfeitas, e vividas com gosto e intensidade, por nelas morarem os nossos beijos.

Proteína de tanto daquilo que eu sou, percorro-os ao detalhe, muitas vezes só porque sim, e sempre, como quem não desiste de vasculhar a semana à procura do domingo, mesmo sabendo que ela já não o tem, nem voltará a ter.

E o tempo, esse mesmo que dizem carregar em si mesmo, a lixivia de esquecer, tem o condão de nos levar ao detalhe mais microscópico dessa saudade, abandonando-nos ali, numa imensidão fria que estranhamos, e que nos faz doer.

Mas já aprendi, e levo sempre comigo uma mão cheia de padres nossos e flores, que vou colocando, devagarinho, pouco a pouco, sobre esses lugares e esses momentos vazios, seguindo este ímpeto sagrado de jamais nos deixar morrer.

Não quero que o vento que sopra, e que passa pelo tudo da história que é a nossa, leve para perto, ou para mais longe, ecos de muito pouco ou de quase nada.

Que esse vento, e todos os ventos, nos apregoem inteiros e felizes, perfumando as planícies, as casas, as montanhas e até os algares mais profundos do universo.

Há muitos anos, nas vésperas do Dia do Pai, a Irmã Celeste ajudava-me, a mim e aos demais colegas do Jardim Escola, a recortar umas flores em papel de lustro, que colávamos depois sobre um pequeno quadrado de cartolina.

No centro, e envolto pelas pétalas coloridas, poderia ser colocada uma estampa de São José.

Porque então ainda estava a aprender a escrever, copiando com mil cuidados, desenhava no canto superior direito desta pequena obra de arte: “Meu querido pai, um beijo do Quim”.

Trazíamos o trabalho para casa depois de pronto, e, muito em segredo, guardávamo-lo num sítio que achávamos ser inacessível aos adultos, fazendo uso dessa “obra prima de querer” na manhã do Dia de São José, correndo descalços para cima da cama aonde o pai ainda mal acabara de acordar.

Em março, cumpria-se a mais prazerosa “vingança” relativamente ao açúcar da manhã do dia de Natal.

Terá sido então, e de modo informal, que assumi sermos feitos de beijos, de fé e de flores, que são, no fundo, as três componentes fundamentais do amor, e também do Céu para onde ele sempre tem uma porta.

Ainda que sob a aparência de um simples, e mortal, quadrado de cartolina.

Ainda que os meus pés descalços sintam hoje, e pela primeira vez desde que nasci, o frio de um chão gelado, quando correm a caminho de uma “cama” sossegada onde já não estás.

Meu querido pai, um beijo do Quim, e um beijo maior do que nunca, porque parte daqui, e chega a essa pátria plena de Deus e de infinita paz.

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