A doce liberdade dos meus passos…
É preciso que a tarde nos prenda para aprendermos a
saborear a liberdade dos nossos passos.
Recordo-me do som estridente das fechaduras nas portas
de ferro que se cerram automaticamente atrás de mim, o pátio sombrio rasgado
por poucas janelas e muitas grades, os corredores longos onde consegue
palpar-se a solidão...
Deixei o telemóvel na entrada, não tenho relógio,
venho sem tempo e com todos os meus livros; que nada mais existe para mostrar
com tanta verdade aquilo que eu sou.
Serão vinte homens que chegam aos poucos e me vão
apertando a mão, preenchendo o espaço da biblioteca onde se sentam depois à
minha frente. Vim passar a tarde ao Estabelecimento Prisional de Vale do Sousa,
em Paços de Ferreira.
"Porque é que fez tantos quilómetros para nos
procurar, logo a nós de quem o mundo foge?"
Gosto de conversar olhos nos olhos sobre aquilo que
sinto e vou desenhando por palavras. E as pessoas são a alma, muito mais do que
a história que a vida e as circunstâncias lhe vão oferecendo. Trairia a minha
fé se pensasse e sentisse de outra forma.
"Um escritor é um solitário?"
Muito pelo contrário. Afasto a solidão das noites em
que estou só trazendo pessoas e afectos para aquilo que crio e depois escrevo.
"É o que nós fazemos na cela quando desligamos a
televisão e sonhamos".
Todos os Homens podem voar porque não há grades que
nos cerrem o pensamento.
"Mas o mundo nunca nos perdoará esta
traição".
Talvez a gente aprenda um dia que aquilo que conta é o
futuro.
"Tenho medo de envelhecer a sonhar por entre uma
vida vazia".
O sonho rejuvenesce. Reinventamo-nos e assim
renascemos.
Peço-lhes um tema para escrever sobre eles.
"As injustiças da justiça".
Como irei falar sobre isto?
Acabamos a tomar um café e a comer línguas-de-gato.
"Promete-nos que voltará para nos falar de si e
dos livros que entretanto escrever".
Prometo.
"E o que achou de nós relativamente ao que lá
fora se diz a nosso respeito?"
Voltarei muitas vezes e sempre com as histórias dos
meus avós e do papagaio do Senhor Ezequiel, aquele que na janela em frente à
minha me ensinou a falar.
Por vezes viajamos para tão longe quando há tanto
mundo desconhecido aqui mesmo ao lado.
Regresso também ao telemóvel, reconcilio-me com o
tempo e reparo que passaram três horas e ultrapassei largamente a hora e meia
prevista para a sessão.
Despeço-me dos anfitriões da direcção da cadeia que me
receberam superiormente.
O chão que piso tem terra, alguns ouriços que caíram
dos castanheiros e libertam frutos. Olho de longe o arame farpado e as grades
nas pouquíssimas janelas das paredes da prisão.
Faço uma foto...
A doce liberdade dos meus passos.
Tenho fome e paro depois mais à frente numa Área de
Serviço, trincando a sandes de presunto enquanto olho os jornais e as revistas
no escaparate.
"Ricardo Salgado organiza festa num hotel de luxo
em Lisboa".
"As injustiças da justiça".
A venda que tapa os olhos à justiça é vulnerável ao
dinheiro e ao poder que a compra matando a isenção.
Em Portugal onde a injustiça é politicamente ambidestra,
resta-nos a nós, os "fracos", o pensamento, para que voemos entre
grades enquanto trincamos línguas-de-gato e brindamos com café e muitas
palavras.
E hoje, junto à janela onde o mar nunca me falha,
autografo livros da “Bolachas Mágicas…” para enviar na Segunda-feira e para que
possam chegar às mãos e às noites das crianças que estes homens têm na vida.
Porque a magia é como o pensamento e nunca cede
perante as grades.
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