A nossa história...
A nossa história poderá contar-se pelas ruas que
pisámos. As calçadas são relicários, e por mais anos que passem eu
jamais esquecerei os tons e as sombras do Outono desta "Sétima
Colina" de Lisboa.
A Maria Guinot cantara "Silêncio e tanta
gente" na Eurovisão há pouco mais de seis meses, melodia que me assolava
bastas vezes ao assobio quando passava ali pela Rua da Escola Politécnica e a
D. Pedro V. Como se tivesse sido inventada para mim.
Chegava de Vila Viçosa para estudar na Faculdade de
Farmácia, e esse Outubro de 1984 ofereceu-me um quarto na sede da Fundação da
Casa de Bragança, ao Príncipe Real.
Em casa, o Senhor Francisco e a Dona Engrácia, colegas
dos meus pais e até aí meus desconhecidos, iam tornando-se aos poucos meus
avós, ao redor das horas que passávamos a conversar e confirmando a pura e
perfeita genética dos afectos.
No jardim sentava-se um velho estranho que nos dizia
bom dia e conversava com quantos passavam, curioso por ver os livros que
transportávamos debaixo do braço. O Professor Agostinho da Silva subia desde a
sua Travessa do Abarracamento de Peniche para ficar horas por ali, onde, e com
alguma sorte, também me poderia cruzar com o Alexandre O' Neill a entrar no “Tascardoso”
ou o Baptista Bastos no “Snob”, à Rua de O Século. No talho encontrava às vezes
a Simone de Oliveira.
“Se uma gaivota viesse…”
Não era preciso. Desde o céu de Lisboa, as folhas
caiam rubras sobre esse Outubro sempre que eu passava pelo Jardim Botânico para
jantar na cantina da Faculdade de Ciências e de caminho comprava iogurtes na
mercearia e carcaças na padaria que também vendia Queques e Bolos de Arroz. Se
não havia muito para estudar passava pelo quiosque e comprava o vespertino
"A Capital" para ler as notícias deixando sempre o melhor para o fim:
as Palavras Cruzadas.
Soares era Primeiro-Ministro na altura em que o PS
ainda "dormia" com a direita, e nós fazíamos greve porque o Ministro
José Augusto Seabra aumentara as refeições de cinquenta e cinco para setenta e
cinco escudos. Não tardaria a ser substituído por João de Deus Pinheiro.
Depois do São Carlos, as óperas passavam pelo Coliseu
em versão económica e… incómoda; que na geral, as pernas dos que estavam atrás
impediam-nos de ter encosto. No Coliseu também cantaria a Bethânia, mas mais
para meados de Março. Antes, havia que comprar isqueiros descartáveis para ir
ver o Fausto à Aula Magna mas com um certo toque de requinte.
As manhãs de sábado eram perfeitas no Chiado, depois
de descer a Rua da Rosa, sem turistas mas com vendedores em delírio de pregões;
e com sorte talvez tomasse o café na “Bernard” ao som das gargalhadas
estridentes da Graça Lobo.
A “Livraria Bertrand”, a varanda do “Eduardo Martins”
na esquina da Rua Garrett com a Rua Nova do Almada, a missa na Basílica dos
Mártires, “O Expresso”, uma “Frigideira de Carne” comprada na Pastelaria Suíça…
E o regresso a casa no autocarro de dois pisos da carreira 39, que tinha um
“Pica” simpático, por certo percursor do agora cantado e famoso do 7.
No domingo talvez desse um salto à Luz para ver o
Benfica, chegando cedo para ocupar um lugar central no terceiro anel, então
ainda incompleto e com vista para Monsanto. O Maniche, o Dinamarquês, marcava
então golos toscos e o Bento voava nas balizas.
Aparco o carro no Camões e ainda há pouco virava no
Rato em direcção a São Mamede. Não me lembro desta vez de ter olhado para São
Pedro de Alcântara ou para a loja das lâmpadas, agora pastelaria para turistas,
cujo dono era parecido com o Mortimore.
Mas neste Outubro de Lisboa, entre duas ruas ajeitei
trinta e dois anos, um instante, não fora o espelho do elevador do parque
revelar-me as cãs e algumas, muito poucas, rugas.
Já à superfície, Outubro pede castanhas, já se sente o
frio; e eu passo do Camões para o Chiado com a música da Maria Guinot presa a
mim por via do inevitável assobio.
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