Folares e chupa-chupas...
Sempre que
era sexta-feira santa, e a procissão do enterro do Senhor passava à nossa
porta, existia alguém que não se dispensava de comentar:
- A Maria
Inácia atrasou-se a cozer os bolos fintos.
Era
totalmente verdade, e tudo porque o forno era demasiado pequeno para a
quantidade de massa, e a profusão de folares que eram fabricados aqui em casa,
tendo por destino os avós, os tios, os tios-avós, os primos…
Não se
importava com isso o Senhor, que, desta forma, ao passar por aqui, levava
sobreposto ao formal incenso, os aromas dos nossos perfeitos instantes de amor.
Tudo
começara na véspera, com a mãe a atar um lenço à cabeça para amassar os quilos
de farinha, acariciados com banha, chá de erva doce, açúcar… a avó Dade também
não resistia a pôr as mãos, o seu saber, e, sobretudo, a sua fé, porque a massa
acabava benzida por ela, com uma cruz desenhada pela sua mão direita.
A festa
continuava noite fora, com os bolos a fintarem (ou a levedarem, se quiserem uma
terminologia menos alentejana) no sítio mais quente da casa, com a mãe a
levantar-se de hora a hora, não fosse a massa atirar-se para fora do alguidar
de barro… e até sair pela porta da rua, como costumava brincar o pai.
Quando eu e
o Zé Artur nos levantávamos, já a dita estava distribuída em montes, em cima da
mesa, e nós ajudávamos a fazer folares, com um jeito tal, que qualquer lagarto,
depois de cozido, ficava com ares de tartaruga.
Na segunda-feira
de Páscoa, íamos para uma clareira do castelo, que está na foto, jogávamos à
bola com o pai, sentávamo-nos na erva, já pejada de malmequeres, e comíamos o
folar, partindo finalmente o ovo cozido que dava corpo aos “lagartos”.
O castelo
era o campo aqui mais perto para quem não tinha automóvel. Quem o tinha e era
encartado aventurava-se para as margens do Guadiana (ou “Gôdiana”, como aqui se
diz, por vezes, mudando-lhe o género, e fazendo preceder a designação de um “a”).
Muitos anos
mais tarde, o meu sobrinho João afeiçoou-se a ir comigo à procissão de sexta-feira
santa:
- Tio, vamos
ver a procissão do Jesus a dormir.
As crianças é
que sabem…
E uma certa
vez por entre o silêncio e a solenidade do evento, resolveu confessar-me em alto
e bom som:
- Tio, eu
estou com fome, mas só de chupas.
Creio que
até o Senhor sorriu de dentro do seu sono, e presumo que Ele não terá
estranhado, tal a ligação de aromas e de festa com que sempre foi brindado
pelos Caeiro Barreiros.
Votos de uma
Santa e Feliz Páscoa para todos, com a certeza de que Jesus Cristo apenas
dorme, esperando que o acordemos dentro de nós, com o grito daquela fome que sente
a alma.
Ainda que
nos considerem ridículos.
Ainda que só
tenhamos a essência simples de povo e de fornos pequenos, existirão sempre clareiras
onde possamos brincar com os malmequeres, por entre o amor que se sobrepõe ao
incenso.
E
ressuscitaremos, sempre.
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