O estatuto e a essência


Pelo final dos anos setenta do século passado, em Vila Viçosa, quando eu fazia da Livraria Escolar, a minha segunda casa, um casal de namorados oriundos da burguesia que então emergia da explosão do comércio do mármore, cumpria o ritual de todos os meses ir adquirir um exemplar da coleção de obras de Eça de Queirós, que a Editora “Livros do Brasil” lançara numa encadernação elegante em tons de encarnado.

Deixavam sempre a promessa:

- Quando acabarmos estes, vamos começar com os verdes.

Sendo que se referiam à coleção das obras do grande Fernando Namora.

Tenho dúvidas se estes dois conjuntos de obras primas da nossa literatura persistem nas estantes destas almas, num arranjo muito republicano, no que às suas cores diz respeito, duvidando eu que o Jacinto, entre Paris e Tormes, assim como o João da Ega, entre o Tavares e o Rossio, tenham alguma vez pisado os tapetes de Arraiolos daquela sala Calipolense.

A mesma dúvida me assiste relativamente ao Dr. Namora, algures entre Pavia e Monsanto, nos retalhos da sua vida de médico.

Gosto de voltar a esta história para ilustrar o quanto da essência e da alma se perde na superficialidade das faces mais ou menos vistosas, mas quase sempre opacas.

A essência do Homem, de Deus e da liberdade.

No decurso desta semana, uma amiga questionou-me relativamente ao facto de eu ter confessado conversar com as árvores.

É verdade.

Falo com elas e reconheço-as no seu modo único e audaz de oferecerem marcos aos caminhos por onde eu sigo: o sobreiro do lado esquerdo de quem sai de Montemor-o-Novo pela A6, o pinheiro que olha a Serra D’Aires quando sigo pela A1 e me aproximo da saída de Torres Novas…

As árvores, assim como todos os seres mais simples do universo, serão sempre a casa de partida para quem procura Deus na excelência da criação. Por vezes, é verdade puxa-nos o pé para os tratados, e para as palavras doutas e difíceis, numa injusta apropriação de Deus operada pelos poderosos e pelos sábios, como que sonegando-O aos humildes e aos pequenos pastores, meus avós, com quem aprendi a linguagem da Terra.

E a liberdade?

Morre afundada no mar da prosápia de quem a reclama exclusividade do seu hemisfério, vendida ao desbarato em frascos de perfume com que certa gente se pulveriza.

Tal qual a opacidade das encadernações.

- Lá por a minha família ser mais importante que a tua, não podes duvidar que eu seja de esquerda.

- Disseste esquerda?

Assim dialoguei com alguém no verão passado.

Apesar do cravo vermelho na lapela, talvez Salgueiro Maia, entre o Terreiro do Paço e o Carmo, ainda não tenha gritado vitória sobre os tapetes, de Arraiolos ou não, destes novos pobres, que convivem algures sob a mesma hipocrisia dos novos ricos.

Uma boa semana para todos, por entre a fé e a liberdade, e todas as essências que, rompendo os estereótipos e as capas, nos fazem melhores e maiores pessoas, porque mais simples e mais verdadeiros.

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