A minha mãe


Nas manhãs de sexta-feira costumo levar a mãe à cabeleireira, passando obrigatoriamente na casa onde morámos e eu nasci, assim como naquela que foi a residência dos meus avós, os seus pais.
Não nos pertencem e ambas apresentam um elevado estado de degradação, que nós nos inibimos, quase sempre, de comentar.
Sabemos há muito que é no amor que se nasce, que se cresce... e tudo o mais são paredes e telhados vulneráveis ao tempo.
Há alguns anos, enquanto eu jantava com os meus pais num restaurante de Vila Viçosa, um senhor nosso conhecido acercou-se da mesa para nos cumprimentar, e alentado pelo meu celibato não resistiu a perguntar-me:
- Então quando é que resolve dar um dia grande aos seus pais?
E a minha mãe, antes que eu pudesse articular algumas palavras, respondeu-lhe:
- Tem dado muitos dias grandes, graças a Deus.
Sei há muito, porque assim aprendi da minha mãe e do meu pai, que o amor se concretiza no ser, muito mais do que em qualquer forma ou detalhe que se possam ver.
Quando vivíamos na casa da Rua de Três, havia manhãs em que éramos acordados muito cedo, ainda com o dia a clarear, com alguém trazendo um pedaço de pano branco e uns preparos, pedindo à minha mãe que costurasse à pressa um vestido para alguma jovem que acabara de morrer no hospital, que era ali tão próximo.
Vinham, invariavelmente, recomendados pela nossa querida vizinha Armanda, que tinha uma loja e vendia tecidos, sendo nascida da mesma génese generosa da minha mãe.
Sempre que perguntavam pela conta, a mãe respondia:
- Já vos basta a dor que sentem. Não me devem nada.
E assim aprendi com a minha mãe que a dimensão de alguém se expressa no amor que cultiva ao seu redor.
Passadas semanas, os pais dessas raparigas voltavam a nossa casa, agradecidos, trazendo-nos cestos de ovos ou outras iguarias do campo, e os beijos que nos davam sob os seus olhares tristes, tinham tanto, mas tanto, de Deus.
E a caridade, aprendi-o sempre, mais do que a baba que escorre da grandeza dos poderosos, é a essência clara dos pobres, predispostos a serem o Céu que caminha pelas ruas.
A minha mãe gosta mais da minha prosa do que dos meus versos, e jamais se inibiu de partilhar comigo o que acha estar bem ou mal. E sobre tudo isso cresci.
A minha mãe nunca me pediu para ser o melhor, sugerindo sempre, isso sim, para jamais deixar desaproveitado qualquer talento.
E o orgulho, aprendi eu a lê-lo, muito discretamente, no seu olhar.
Na noite de julho passado, quando o meu pai adormeceu, e nas muitas horas que passámos juntos os dois, eu e a mãe, atravessando a madrugada da nossa terra, jamais usámos a palavra morte, ainda que sentíssemos a presença muito marcada da saudade.
Há muito aprendi com a minha mãe que o amor sendo amor, assim, exige da fé coerência e é pleonasmo da eternidade.
Nos muitos serões que agora passamos juntos, a mãe faz tricot com lãs coloridas que escolhemos os dois num sítio da internet, e eu alinho versos e prosas que vou publicando, ou que jamais publicarei.
Ligamos ao meu irmão, resgatamos o meu pai de todos os hipotéticos silêncios...
Há muito aprendi com a minha mãe, a resgatar de todas as cores, a malha que nos tece um dia novo, por nele nos reinventarmos.

 


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