Viagem às ruas escuras
Não existem cidades sem ruas estreitas, mal alumiadas, e muitos agrestes, no empedrado e na inclinação, tal qual os dias e aqueles seus minutos que doem.
Gosto muito de vos falar das avenidas solarengas que respiram
a primavera, acredito, inclusive, que estarão acostumados a isso, mas hoje, com
o devido pedido de desculpas, convido-vos a caminhar comigo na escuridão desses
becos mais sombrios.
Regressamos por momentos aos anos setenta, e aos momentos em
que a liberdade florescia finalmente no regime e na ambição da gente, mas o
gesto da maioria era ainda refém dos estereótipos e dos seus julgamentos
sumários, invariavelmente, infelizes.
A liberdade leva o seu tempo até aprender a lidar com o
respeito pela identidade, e por ela, com o reconhecimento da grandeza da diversidade.
Ao contrário da maioria dos meus colegas, eu preferia ler um
livro a jogar à bola, gostava mais de estudar do que ir destruir ninhos e jogar
à pedrada, tinha boas notas, não ridicularizava as raparigas, e até, muito
antes pelo contrário, sentava-me com elas a partilhar a poesia dos entardeceres
por detrás do palácio.
Eu e mais uma meia dúzia de amigos, que por nada mais do que
tudo isto, éramos ridicularizados, perseguidos, e agredidos, inclusive
fisicamente.
Por esse tempo, e como tão bem a descreve Miguel Vale de
Almeida no seu livro “Senhores de si”, fruto de uma investigação antropológica
realizada precisamente na minha zona, a masculinidade fazia o apelo do grotesco,
do pontapé e da boçalidade machista.
Hoje, a essa agressividade gratuita chama-se bullying,
mas, à sua natureza e expressão, há muito que eu a trato por tu.
O que me valeu a mim e aos meus amigos?
A família, sempre, indefetíveis de nós, o facto de estarmos
juntos e unidos, os versos de Fernando Pessoa, que são melhores do que a
tintura de iodo para tratar das feridas, e a fé, porque o Céu será sempre a
inspiração e ambição, algures por cima das nossas mais humanas fragilidades.
E quando digo a fé, orgulho-me de dizer que a minha se
expressa na religião católica, de onde por vezes só se publicitam as manhãs
submersas, mas que a mim me permitiu cruzar com gente boa e maior.
Indefetíveis de nós.
Resultado de todos esses benefícios: não me recordo de não
gostar de mim, e jamais um pontapé me feriu a autoestima.
Nunca serei um herói, porque sou apenas um homem que caminha
em busca do melhor de si, reconciliado com a vida e com a sua história, mas
orgulho-me, e perdoem-me a imodéstia, de ter conseguido crescer sem azedume,
sem remorsos e sem a sombra de qualquer pena, passando hoje por alguns desses
que me agrediam, expressando-lhes um sincero bom dia e um sorriso.
Com naturalidade.
O que irá na alma deles não me interessa, já tenho a minha
para cuidar, e com ela já tenho muitíssimo trabalho.
Passado quase meio século, e perante as mais recentes
notícias, concluo que a liberdade tarda em aceitar a identidade, e a agressão,
assim, gratuita e imbecil, continua a fazer vítimas.
Ruas escuras, minutos que doem... em cidades e tempos que
deveriam ser de primavera.
Já não necessitamos de chaimites, mas continuamos a precisar de
lavar-nos nas águas de abril, ateando os cravos no tom do respeito, da
educação, do civismo, de assumir que existe o certo e o errado...
Só mais um detalhe que poderá ser relevante: tudo quanto vos
relatei acerca da minha adolescência era mantido no segredo dos muros das
escolas, mas eu estou seguro que a grande maioria dos pais dessa gente que nos
agredia, se acaso tivesse conhecimento de tais atitudes, condenaria abertamente
os seus filhos, e até seria capaz de nos pedir desculpa, a nós e aos nossos
pais.
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