Os meus avós
A minha avó Francisca era a melhor amiga da cal, bastando um dia breve para que as paredes ficassem divinamente imaculadas, tal qual manda o Alentejo. E ao fim da tarde, antes de devolvermos ao seu sítio, cada peça da mobília, eu invejava-lhe o olhar e o jeito que dispensavam a régua na hora de desenhar a direito, o rodapé encarnado.
Fazia-me uvada,
com uvas, mel e frutos secos, oferecia-me cravos dos vasos que tinha na janela que
dava para a Rua do Poço, e eu ia com ela lavar a roupa ao ribeiro, com um
petisco para o almoço e milhares de histórias para contar.
O meu avô
Joaquim trazia-nos frutos da horta, e a única vez que eu caí da escada na casa
da Rua de Três foi pela pressa de o ir abraçar, quando nos vinha entregar um
saco de limões.
Ao tratar da
terra encontrava moedas antigas que me oferecia e eu ia guardando num boneco de
cortiça que fiz nos Trabalhos Manuais, no primeiro ano do ciclo preparatório.
Eu ia com ele
até ao colmeal, e voltávamos com peras pequenas que vendíamos aos vizinhos,
fazendo uso de uma balança gigante que pendurávamos nas traves do tecto da
cozinha.
A casa da avó
Chica e do avô Joaquim tinha uma escada em L com uma acústica extraordinária.
Era aí que eu os chamava depois de ter aberto a porta pondo a mão pelo postigo
da porta de madeira.
A minha avó
Natividade gostava de me ensinar a bailar, preparava-me pastéis de massa tenra,
tricotava-me as botas de dormir, e, sempre que tratava das matanças, fazia um
chouriço miniatura para me oferecer.
Abraçava-me,
partilhando o seu xaile, na hora de me levar a casa depois do jantar, vestia-me
de São Francisco para desfilar nas procissões, ajudando a pagar as suas
promessas, e, levava-me com ela a rezar à igreja de Nossa Senhora da Conceição,
mesmo que já fosse noite e o templo estivesse fechado. Eu ajoelhava-me ao seu
lado na pedra da porta principal.
Quando o Papa
João Paulo II foi a Vila Viçosa, a avó Dade viu-o passar na avenida perto da
sua casa e disse:
- Este homem é
santo.
O avô Francisco
era carpinteiro, fazia-me réguas com os milímetros afinados, oferecia-me uma
nota de Santo António (vinte escudos) no dia dos meus anos, e quando eu
terminei a quarta classe ofereceu-me um leitor de cassetes que ainda hoje
guardo comigo.
No verão de
1974, a avó Dade e o avô Chico levaram-me com eles a um passeio pelo norte.
Numa excursão organizada por um conterrâneo, os colchões viajavam no tejadilho
do autocarro, a comida era feita em fogareiros de petróleo, e eu dormia entre
os dois avós, sempre na melhor cumplicidade da lua e das estrelas.
Os meus quatro
avós tinham gestos e palavras de mel, não deixando jamais de cultivar a exigência, e aplicando
tolerância zero à asneira, à preguiça e à falta de educação.
Eram fontes
intermináveis de riso, mas implacáveis na hora do treino do “se faz favor”, do
“muito obrigado” ou do “com sua licença”.
E existia entre
nós um fluxo interminável de afetos, porque se eu os visse trinta vezes no
mesmo dia, teria de os saudar com trinta pares de beijos.
A avó Chica foi
a primeira a partir, num dia muito quente de junho, e quase na véspera de eu
cumprir quinze anos. Por a escada ser em L, o seu “sono” teve de cruzar a
janela dos cravos.
A avó Dade, que
ainda transportei muitas vezes no meu carro, mas que detestava autoestradas por
não conseguir ver gente nem casas, foi a última a partir, e em plena coerência
com a sua profecia de que o mundo acabaria na era dos três noves: fê-lo no
último dia do ano de 1998.
Mas os quatros avós respiram em mim, e continuarão a fazê-lo, por entre esta simplicidade que é o
melhor fermento do ser.
Os avós são os nossos pais tranquilos, sendo a garantia da essência doce que o sol promete em cada amanhecer. São uma inspiração, o mote
dos melhores dias e o colo que permanece, cruzando connosco qualquer idade.
Algures numa
manhã de inverno acompanhei o avô Joaquim, com um rancho de mulheres, à apanha
da azeitona. Com a sua arte e após varejar as árvores, vi-o atirar ao vento a mistura de folhas e frutos.
Por serem mais leves, as folhas pousavam num espaço intermédio, e as azeitonas voavam para mais longe, predispondo-se aos enormes sacos que as levariam ao lagar, para mais cedo ou mais tarde brilharem nas candeias.
Fica a meia vida o frágil e o quase nada, e para longe, connosco, voam os avós, sempre, naquilo que mais importa: os beijos e os frutos de onde se reinventa a luz
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