Uma aula de eternidade
A porta do nosso liceu era a última que poderia ver quem saía de Vila Viçosa no sentido de Borba.
Talvez
por isso, ao olharmos para aquela primeira curva da estrada ladeada por muros caiados,
e oliveiras que se lhe sobrepunham com a legitima divindade de um altar, nós sentíssemos
que o futuro poderia ser tudo aquilo que o coração mandasse.
Não
existiam casas erguidas, gritos ou gestos de alguém, que pudessem frenar-nos o
passo e a vontade, obrigando-nos a despertar.
Era
tanto o sonho que respirávamos, todos juntos, entre a lírica de Camões, a fotossíntese,
a trigonometria… e a amizade, que é, comprovadamente, muito mais do que um
conceito.
Um
dia construíram um liceu novo e nós mudámos para junto da Estação do Caminho de
Ferro.
O
mesmo sonho, já não sobre o afago dos paralelepípedos, mas sobre o ruido
metálico dos carris.
Em
altura de greve dos maquinistas, até aproveitámos o “furo” nas aulas para irmos
tomar uma máquina, aproveitando para fazer uma foto.
E
continuámos a sonhar-nos muito, mas mesmo muito mais do que tudo aquilo que nos
diziam ser possível ser.
Ontem
fui às compras ao supermercado, e a conduzir, passei à porta do nosso velho
liceu, seguindo pelo empedrado até uma das três grandes lojas que “enfeitam” o
bairro novo que foi construído após aquela primeira curva.
Há
uma rotunda que nos obriga a buscar outra direção, até porque mais à frente, a
estrada ruiu para o fundo de uma pedreira. Para quem busca o caminho de Borba,
a nova estrada passa pela antiga estação da CP, mas numa perspetiva diferente
daquela que nós tínhamos em 1983, quando “assaltávamos” comboios.
Esta
semana partiu para o Céu uma das amigas que está comigo na foto. Foi a primeira
a fazer esse trajeto, e eu que me alimento de memórias como quem trinca pão
para calar as saudades, apercebi-me mais uma vez, de como viver é contrariar esta
sobreposição de casas, rotundas, gente, estradas, supermercados, bombas de
gasolina… aos sonhos que ousámos cultivar.
A
logística tenta matar-nos a poesia, violentando-nos os sentidos por via do
olhar, mas nós resistimos a envelhecer, perseguindo sofregamente as rosas.
Regressei
a casa, e sentei-me à mesa que tem vista para um dos enormes ciprestes do
Terreiro do Paço. Fica exatamente na esquina da Janela de Lisboa, e como quem
segue para a porta do nosso antigo liceu. Recordo-me deste cipreste ter ardido
e do professor de Português do nosso oitavo ano, o saudoso Padre João de Deus,
nos ter pedido para fazermos uma composição sobre esse acidente, que, visto à
distância, foi apenas um breve instante que passou.
A
lição das árvores desde os seus modestos e tão despretensiosos altares, para me
recordar, mais uma vez, que o sonho quando é nosso, é inabalável, por muito que
se esforcem para traçar de cimento e semáforos, todos os contornos que a alma,
com esmero, fez questão de lhe atribuir.
Regresso
aos meus dezasseis anos e à acústica dos pavilhões improvisados que oferecia
mestria de soprano às nossas gargalhadas. Revejo as viagens infinitas que fazíamos
a olhar para uma curva da estrada em tardes de mini saias, de caneleiras ao
estilo “Fame”, tardes à boca de sino e cabelos flutuantes e vaporosos, por
sobre o desmentindo da brilhantina.
E
a morte?
É
apenas uma aula de eternidade.
Embora
de exame difícil e doloroso, e por muito que seja o ruido e a volumetria das “casas”,
não existe “estrada” que, por via da alma, não prevaleça.
Maria
do Céu, teremos sempre o nosso velho liceu, para voltarmos às primeiras curvas
de muito mais de mil gargalhadas.
Comentários
Enviar um comentário