A Rua de Três
É
algo estreita, a rua onde eu nasci, e em metros de comprimento não terá mais de
cem.
A
meio, no trinta e quatro, com entrada por uma porta encimada por um pequeno
arco de pedra, fica num primeiro andar, a casa onde vivi os meus primeiros
dezasseis anos de vida. De 1966 a 1982.
Quem
desce da Praça, por esta rua chega ao Mercado, e talvez por isso, muitos
vizinhos faziam daquele espaço, então ao ar livre e de bancas de madeira, o seu
ganha-pão: a prima Hermenegilda que vendia brinhol (farturas) numa barraca de
madeira, uma vizinha que fazia e comercializava bolos, a família Pereira (“Os
Barateiros”) que na nossa rua tinham uma retrosaria e um pronto-a-vestir e que
nos mercados vendiam roupa, e também a vizinha Maria e o Sr. António Garcia (“O
Laranjal”) que tinham um lugar de frutas e legumes um pouco abaixo da minha
casa.
Havia
também duas mercearias, a da D. Maria da Assunção e, a minha preferida que era a
do Sr. Carola, uma padaria que tinha uma funcionária simpática de nome Maria
Eugénia, a sapataria do Sr. Cabral onde também trabalhava um sapateiro de S.
Romão, o Sr. Zé, e uma loja de electrodomésticos que pertencia ao Sr. Farelo.
Em
qualquer destas lojas, a porta fechada não era sinal de ficarmos impedidos de
comprar, pois batendo à porta dos proprietários, eles sempre tinham a simpatia
de nos vir atender, fosse a que horas fosse.
Havia
também duas barbearias, a do Sr. Marques (“O Sevilha”) e a do Sr. Boné, este
último mais simpático para nós pois o seu concorrente era mais velho e com
menos paciência para as nossas brincadeiras, insistindo sempre em nos roubar as
bolas.
A
barafustar com as nossas brincadeiras, também contávamos sempre com a D.
Palmira, que passava os invernos em Lisboa, mas que chegava sempre a tempo de
partilhar com a vizinhança os muitos frutos da inesgotável nespereira que tinha
no quintal.
Na
nossa rua também estava a entrada para o Hospital e por isso, muito de perto convivíamos
com as lágrimas dos nossos conterrâneos, as de tristeza em caso de doença ou
acidente, e recordo-me sempre dos acidentes muito graves que ocorriam nas
pedreiras, e também as de alegria pois as salas do internamento da maternidade
também davam para o nosso território.
Sempre
alerta estavam as freiras-enfermeiras nossas vizinhas e também a D. Jerónima
que vivia sozinha e que passava os dias à janela do seu primeiro andar, que
tinha por baixo uns armazéns de mobílias dos seus sobrinhos. Nada se passava na
rua que ela não desse conta em tempo real, não escapando jamais alguém que
discretamente ousasse “roubar” uma planta do verdadeiro jardim que a vizinha
Gertrudes tinha à porta e que quase a impediam de entrar no seu pequeno
rés-do-chão. A ela, e também à sua gata de nome Cassilda que juntamente com o papagaio
que o Sr. Ezequiel tinha à janela, eram grandes companheiros da pequenada.
Muito
simpático para nós era também o vizinho Cristóvão Grilo que vivia na casa
imediatamente abaixo da minha e que tinha a profissão de estafeta. Saía de Vila
Viçosa no comboio das seis da manhã, trazia as encomendas e tratava dos
assuntos dos Calipolenses tendo por base, em Lisboa, uma velha carpintaria na
Baixa, na Rua dos Douradores, regressando depois a Vila Viçosa no comboio que
chegava à meia-noite. Entre a estação da CP e a sua casa, transportava as
encomendas num velho carro de mão que tinha uma roda metálica tão barulhenta
que com o seu som até servia de aviso horário:
-
Tens de te ir deitar. Já é tão tarde que até o Vizinho Grilo está a chegar.
Os
serões não eram em geral longos, excepção às noites da festa de São Pedro e às imediatamente
anteriores em que nos juntávamos para fazer as flores de papel que decorariam a
nossa rua. E sempre, sempre em segredo, pois com as ruas vizinhas havia uma
eterna rivalidade na hora de erguer as cordas com o resultado do trabalho.
Não
fechávamos as portas à chave e em geral abríamos os postigos, gritávamos os
nomes dos donos das casas e entrávamos, fosse para pedir hortelã, salsa ou
coentros, para acudir em alguma doença ou então para comentar algum assunto de
âmbito mais privado.
E
assim, jamais nos sentíamos sós. De verão sentávamo-nos todos à porta a ouvir
as histórias que a Avó Bacalhau nos contava, e de inverno, se alguém não se
sentisse bem na sua casa, havia sempre uma cadeira a mais para os amigos ao
redor das nossas braseiras.
De
se aquecer também tratavam os homens quando entravam no Café Restauração, ao
cimo junto à Praça, ou então na Taberna do Sr. Mamede que ficava na esquina com
o Rossio e o Mercado.
Quando
de lá regressavam vinham de facto quentes, quer de corpo quer de ânimo…
E
ao sabor das estações e com brincadeiras alocadas a rapazes e raparigas, também
nós brincávamos com os da nossa idade. Recordo-me de sermos muitos e muito
unidos: o Tói, o Zé Carlos, a Vitorinha, a Lavínia, a Jesus, a São, a Nini, a
Manuela, a Georgina, o Paulo, e até a Candinha Cigana, que com os seus pais
vivia na nossa rua e que só nos lembrávamos que era cigana porque a sua mãe
usava saias compridas.
Para
além dos temperos para a açorda, e no nosso caso, dos cromos de colecção e dos
berlindes, pouco mais de material tínhamos para partilhar.
E
talvez por isso, tivéssemos mais disponibilidade para nos especializarmos e
apostarmos nos afectos.
Foram
sempre eles que tornaram mágica a minha rua, a minha eterna rua.
Ou não fossem os afectos, o pão da alma.
A VIDA NAO É A QUE A GENTE VIVEU E SIM A QUE GENTE RECORDA COM SAUDADE
ResponderEliminarRUI PEREIRA
A cada palavra, recordo a minha rua. Não tinha os mesmos nomes, mas os afectos, as brincadeiras e as amizades eram as mesmas. Bons velhos tempos? talves! tiveram a sua gloria. Tenho-os no coração e uso-os para manter a cabeça limpa.
ResponderEliminarFoi Bem!
Bonito retrato da infância que se vivia no Alentejo e noutras terras.
ResponderEliminarParabéns pela sensibilidade em recordar e chamar a atenção para menorias adormecidas.