Os cinco e o São João Evangelista
No
tempo em que os andores só andavam aos ombros dos homens, e estes, mais do que
em procissões, andavam maioritariamente entretidos pelo Alentejo em múltiplas
actividades revolucionárias de natureza laica, cedo nos recrutou o saudoso Sr.
Domingos para que nos eventos da Semana Santa, nos encarregássemos, eu e os
meus quatro amigos, de transportar o andor de São João Evangelista.
Bastou
termos dado aquele avanço na altura que as mães designam por “pulinho” e aí
fomos nós, de voz grossa e buço a rebentar por entre o acne, de amêndoas de
açúcar nos bolsos, a carregar o andor nas procissões de Terça-feira Santa,
devidamente coberto por um pano negro no breve trajecto entre a Igreja de São
Bartolomeu e a Igreja de Nossa Senhora, e de Sexta-feira Santa, então
descoberto e enfeitado por fúnebres palmitos, na procissão do enterro do
Senhor.
Eu,
o João Paulo, o Manuel, o Paulo Geadas e o Paulo Quinteiro, inseparáveis,
acrescentávamos assim uma actividade nocturna aos dias das férias da Páscoa que
compartíamos no celeiro da loja do Sr. Domingos, pai do João Paulo, a jogar ao
Monopólio, ao King, ao Cluedo, etc.
E
sendo a imagem de São João Evangelista, a mais mártir das imagens processionais
do universo Calipolense, vitima de uma decapitação nas grades da Igreja da
Esperança, e anos mais tarde, de uma brutal queda em plena Rua da Freira;
jamais o nosso quinteto deixou de ser eficaz e seguro na manutenção da
compostura exigida por tão solenes eventos da Semana Santa.
É
um facto que praguejávamos contra o andar desengonçado do Manuel no seu
peculiar jeito de pôr os pés para dentro, ou contra a “arte” de alguns que se
agachavam fazendo com que o peso se repartisse apenas pelos outros três; mas
jamais deixámos, o quarteto efectivo e o elemento suplente que dava assistência
aos demais e ia rodando entre todos, de cumprir o nosso papel. E na história do
“transporte” do São João Evangelista, pelo sucesso, poderemos ser considerados
uns verdadeiros “Mourinhos do Andor”.
Não
é definitivamente pela força das memórias desta minha ligação à sua imagem, que
tenho uma particular devoção por São João Evangelista: admiro a forma como se
refere a si próprio como “aquele que Jesus amava”, era o mais novo dos
apóstolos, acompanhou Jesus até ao momento da sua crucificação sendo
simultaneamente o mais veloz na busca do túmulo vazio, escreveu o quarto
Evangelho, aquele que é diferente dos outros três, os sinópticos, aquele que
mais do que relatos factuais, enfoca o aspecto espiritual de Jesus.
E
talvez o “peso” do “discípulo amado” nas nossas cinco histórias pessoais, todas
diferentes entre si, não seja apenas a memória das dores de ombros nos dias a
seguir à procissão, e seja muito mais, uma inspiração para a amizade que nos
une e unirá sempre, a amizade que não assenta apenas no cruzamento das nossas
histórias nos dias que vivemos juntos, mas na extraordinária forma como de
forma cúmplice, engrandecemos o estatuto de “discípulos amados” e
bem-aventurados da criação, saboreando até à última gota, o doce sabor do prazer
que a vida contém.
Porque,
se até a Semana Santa culmina com a Ressurreição, porquê fazer da vida, uma
roxa e sofrida via-sacra para o calvário?
A
vida é grande demais para que o nosso destino seja outro, que não o sorriso dos
“túmulos vazios”.
Tentando
não desacertar o passo com a sorte, equilibrada vai assim a vida, qual andor,
sempre que tentamos ser maiores na nossa forma única de ser e estar, jamais
“sinóptica” da forma de ser e estar de alguém.
Exigentes
na nossa singularidade, a caminho de uma singular vida de excelência.
E
a amizade, sempre, como inspiração e suporte, quais mosqueteiros tornados um,
nas procissões da Paixão do Senhor.
Na
minha sala mantenho numa moldura, uma foto do meu grupo de cinco amigos, esse privilégio
dos meus dias de juventude. Tirámos esta foto há quase vinte anos e… muitos
quilos, hérnias discais, reumatismo, diabetes e cabelos brancos atrás, no
advento dos quarentões avançados e cheios de charme que somos hoje.
E
às vezes passam-se anos que não nos vemos…
E
depois desta foto nunca mais voltámos a estar todos juntos…
Mas
ainda hoje era capaz de pegar com eles no andor de São João Evangelista, e por
cima das hérnias e do reumatismo, não desacertarmos nunca o passo na procissão.
Porque
nem o tempo consegue matar o que nos está colado á vida.
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