Casinhas de papel
Na
casa da Tia Maria e do Tio João, à Rua de Santa Luzia, existia um pequeno
quintal onde estava implantado um canteiro, que para além de hortelã, salsa e
coentros, era o habitat de um imperial limoeiro que durante todo o ano nos oferecia
uns enormes e sumarentos frutos de cor amarela, para além de uma fantástica
sombra a todo o espaço rectangular cujo piso era composto por umas enormes
lajes, onde eu me entretinha a brincar.
Numa
sala de porta sempre aberta para o quintal, havia um pássaro amarelo, o Sarico,
que dizia olá e imitava os sons do martelo do Tio João enquanto ele se dedicava
ao seu ofício de sapateiro.
No
piso de cima existia um enorme quarto rasgado por uma janela, que por ser alta,
e pelo facto da casa estar num dos pontos mais altos da Vila, permitia ver toda
a fachada da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, no Castelo.
Era
neste quarto, com um tecto inclinado mas muito alto, que eu dormia numa das
três enormes camas que ele comportava, todas alinhadas ao melhor estilo
enfermaria de hospital.
No
inverno, o ar do quarto era gelado e então a Tia Maria fazia-me a cama com uma
colecção de mantas e cobertores que pesavam toneladas sobre mim e me davam a
sensação de estar sob a carapaça de uma tartaruga.
Nessas
manhãs frias, o sol enganador convidava a levantar, mas o frio que sentíamos na
ponta do nariz, fazia com que a alternativa de permanecer na cama, fosse
invariavelmente a escolhida.
E
era então, já com a luz do sol a entrar pela janela e a olhar para o tecto alto
sobre mim, que eu me entretinha a inventar histórias que contava a mim próprio,
socorrendo-me para tal da imaginação e das formas irregulares oferecidas pelos
quadrados da tijoleira, que entre as traves de madeira, maiores ou menores,
compunham as “madres” do tecto, todo ele pintado de amarelo. Uma gigante banda
desenhada implantada no tecto do quarto, e só para mim.
A
casa dos tios recebia de tempos a tempos, a visita de uma família composta por
vários irmãos, todos eles de Vila Viçosa mas desde há muito radicados em
Lisboa, que pelo facto da Tia Maria ter sido a sua ama, tinham criado connosco
uma verdadeira ligação de família.
Traziam-nos
sempre um presente muito especial. Com jeito para as artes, alguns deles tinham
desenhado, impresso e comercializado, umas folhas de cartão em A4 onde estavam
implantados os elementos que depois de devidamente cortados, dobrados e
colados, nos ofereciam casinhas de papel, todas diferentes e de todas as
regiões de Portugal, que eram perfeitas para que sobre a mesa ou sobre as lajes
do quintal, pudéssemos construir as cidades onde habitavam os nossos bonecos do
Carrossel Mágico que as marcas de gelados de então nos ofereciam.
Para
além disso, adoravam conversar connosco, e quando era verão, nas tardes
temperadas por uma boa limonada ou saciados por um copo de água fresca do
cântaro de barro, à sombra do limoeiro, contavam-nos histórias, daquelas que
falam de sítios longínquos, que nos ofereciam recargas de sonhos para os nossos
dias simples.
Passaram-se
muitos anos, os tios partiram há muito, a casa está diferente e tem novos
proprietários e hoje, cedo pela manhã, fui à Igreja de Rio de Mouro despedir-me
do último arquitecto das minhas casinhas de papel.
Um
breve adeus, um até já…
Quem
um dia plantou um sonho no coração de uma criança, ganha definitivamente a imortalidade,
a mais certa, a da eterna memória, a imortalidade enraizada nos indestrutíveis afectos.
Saudade é um sentimento que quando não cabe no coração, escorre pelos olhos.
ResponderEliminarRui Pereira
Há memórias que ficam para sempre nos nossos corações e são eternas.
ResponderEliminarSaudades que ficam marcadas, e morrem connosco.
M. Pereira