Belas e tecnicamente assistidas
O
final de Agosto e a preparação do visual para o regresso ao trabalho após as férias,
por certo justificará as dezenas de números à minha frente na fila para cortar o
cabelo, que me colocou durante alguns largos minutos em contacto com a componente
feminina do cabeleireiro misto que frequento.
Uma
janela aberta para o universo feminino e para os segredos que ele encerra.
Gordas,
magras, altas e baixas? Não importa, porque todas as clientes ficam iguais
depois de cobertas por larguíssimas capas negras semelhantes às que antes na
minha terra se fabricavam para cobrir e disfarçar as botijas do gás.
De
capa, e sempre de mala ou carteira na mão, a provar que os cabeleireiros de
senhora não são espaços desprovidos de amigas do alheio.
Sentadas
ou em movimento, porque às dezenas circulavam naquele espaço, as mulheres de
capa fizeram com que me sentisse no espaço de uma edição dos Jogos Sem
Fronteiras, num jogo de bonecos sempre-em-pé à espera de serem derrubados pelos
elementos de alguma equipa de Albufeira ou Gondomar.
Nas
capas, reparo, há um bolso onde o funcionário da recepção coloca um papel, por
certo com o circuito de beleza e tratamentos a aplicar. Qual processo clínico à
entrada para um bloco cirúrgico.
A
coisa é mesmo a sério e eu não resisto a fazer circular o meu olhar pelo
espaço.
Há
uma senhora sentada e com um ar super aborrecido, de mala no colo e com a nuca
encostada ao lavatório, que tem a cabeça coberta por uma toalha que só deixa
observar uma pilha de materiais metálicos que lhe assentam na testa, quase ao
jeito de estar a equilibrar na fronte, dez tabletes de chocolate da Regina.
Reparo
numa cabeleireira que com uma só mão segura dois secadores e puxa com tal
violência o cabelo da cliente, que se o fizesse assim a mim, confesso, deixar-me-ia
morto. Com a ajuda do espelho, procuro o fácies da senhora para ir em seu auxílio
com o olhar e dar-lhe algum conforto. Surpreendo-me. Está com um ar tão sereno
que parece ir adormecer em breve.
Do
outro lado há uma mãe que levou as duas filhas com ela, e o que se assiste é um
verdadeiro ritual de iniciação, com a mãe a explicar tudo em detalhe às filhas
que não deixam de estar algo assustadas com as investidas da cabeleireira e a
sua escova de tortura.
Há
mulheres que não satisfeitas com a intervenção nos cabelos, fizeram sentar junto
a si uma manicura numa cadeira baixa, e estão assim despojadas de cabeça e
mãos, entregues aos tratamentos das funcionárias que se entretêm a discutir a
edição da Caras ou a novela da TVI.
Observo
então as restantes cabeleireiras e vejo que todas interagem umas com as outras,
falando de tudo o que lhes passa pela cabeça, totalmente alheias, de olhar,
ouvido e pensamento, das mulheres que depositaram os cabelos nas suas mãos e
que sofrem pelos repelões violentos nesta guerra de escova e secador. Repelões
dados ao ritmo da conversa com a parceira do lado e, meu Deus, quanto stress
descarregado nas melenas alheias.
Na
parede ao meu lado está um painel e mal começo a ler encontro justificação para
esta confusão: às quartas, 20% de desconto em Trabalhos Técnicos.
A
malta veio em massa porque hoje é mais barato e eu sem saber vim meter-me num “Pingo
Doce” em Dia do Trabalhador.
Mas,
Trabalhos Técnicos?
Socorro-me
do precário, que também está no placard, para melhor compreender o que são
neste universo, Trabalhos Técnicos, e fico a saber que o Brushing Tissagem, o
Penteado Babyliss, o Flash Total, as Madeixas de Touca Cabelo Curto, o Color
Touch, a Dose Suplementar de Tinta, o Banho Americano, a Meia Ondulação, a
Desfrizagem com 100 ou 50 ml de produto, a Progressiva Intensa com 60ml de
produto, a Térmica com 200ml de produto e a Dose Extra Térmica, o serão por
certo.
Entretanto
chamam o meu número, corto o cabelo e em minutos estou na fila de pagamento,
também ela mista e impregnada de mulheres após Trabalhos Técnicos.
Há
no ar um cheiro a produtos, mas confesso-vos que nenhum tem o cheiro tão agradável
da laca que a inesquecível e fantástica D. Mariana Aurélio colocava no cabelo
da minha mãe e que eu não resistia a cheirar sempre que ela chegava a casa.
Mas
tenho de confessar, as pagantes que como eu aguardam na fila, estão todas mais
bonitas.
Valeu
a pena a intervenção técnica ao fim de tarde.
Valeu então a pena as intervenções técnicas.As mulheres estão cada vez mais bonitas .
ResponderEliminarRui Pereira
Bonito o texto. Vale sempre a pena ir ao cabeleireiro quem é que não gosta de ficar com o cabelo bonito.
ResponderEliminarAté os homens.
M.Pereira
Pois é, assim, se calhar, também eu ficava bonito. A verdade é que, cada vez que vou ao cabeleireiro, venho de lá mais careca. Isto não me parece bem, mas é o que se arranja. A vida tem bons e menos bons momentos.
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