No tempo da “Cassete - Pirata”
Quando
terminei a 4ª classe em Junho de 1976 depois de uma prova final imaculada, um daqueles
exames à antiga em que íamos todos aprumados e com a roupa “de ir ver a Deus” porque
havia uma componente oral e uma escrita em que, com a ajuda de umas fantásticas
Canetas de Tinta Permanente provávamos as virtudes da nossa excelente
caligrafia em folhas de papel almaço dobradas na margem para as correcções e as
classificações; nesse tempo em que este “Ensino” não era “Básico” mas “Primário”
e os “Auxiliares de Acção Educativa” ainda se chamavam “Contínuos”… o meu avô Chico
ofereceu-me como recompensa um leitor / gravador de cassetes da marca Philips.
Com
a dupla opção de poder funcionar ligado à corrente eléctrica ou a pilhas, a sua
portabilidade era também garantida pelo tamanho relativamente pequeno e por uma
asa metálica colocada junto aos botões devidamente alinhados e de cor branca e
vermelha que permitiam concretizar todas as funções do aparelho: tocar, transportar
a fita para a frente, fazer recuar a fita, gravar e controlar o volume.
A
gravação das cassetes “virgens”, ou então de algumas previamente utilizadas mas
que tinham música que já não nos interessava para nada, era assegurada com a
ajuda de um pequeno microfone que estava ligado a um fio que por sua vez se
conectava a um orifício próprio que existia na parte lateral do aparelho.
Desde
o dia em que essa oferta se concretizou jamais alguém em minha casa conseguiu
ver um Festival RTP da Canção ou um Festival da Eurovisão, de uma qualquer
outra forma que não fosse em silêncio, pois o pequeno microfone era colocado
estrategicamente junto à saída de som do televisor e as canções ficavam desde
logo registadas na fita da cassete, postas então à mercê das apreciações que eu
e os meus amigos faríamos no dia seguinte, à mistura por certo com algum som extra
de “bateria” derivado do ruído dos tachos ou da louça, uma vez que a minha mãe
não se podia privar de concretizar as lides domésticas do nosso serão familiar.
Estas
gravações eram também o suporte para interpretações que nós próprios fazíamos nas
tardes passadas a brincar entre caixas de cartão no Celeiro do Sr. Domingos, o
espaço contíguo à sua loja de tecidos e de capotes Alentejanos que tinha na
Corredora; em Festivais made in Vila
Viçosa que tinham até chamadas de votação aos diferentes distritos: nunca mais
me esquecerei que em Viana do castelo há um jornal chamado “Aurora do Lima” e
em Castelo Branco, “A Reconquista”.
Em
época de Festivais, uma colega questionou-me sobre o segredo de saber tanto
sobre o tema e me recordar de muitas canções e intérpretes de quem mais ninguém
se lembra.
Obviamente
que a memória ajuda e também o gosto de ser “Eurofã”, que assim se chama pela Europa
fora a quem nutre simpatia sobre o assunto; mas o maior segredo reside nestes
auxiliares de memória gravados ao serão, ao vivo e… a preto e branco, que cor
na televisão em Portugal é coisa só de 7 de Março de 1980, noite de Festival
apresentado pelo Eládio Clímaco e pela Ana Zanatti directamente do Teatro S.
Luís, em Lisboa; depois de nas eliminatórias, uma cantora de nome Zélia Lopes
ter cantado “Nada a perder” (“Vou viver a minha vida / tal e qual eu entender /
sou maior e vacinada / não tenho nada a perder”) naquilo que poderemos chamar a
“Pré-história da Música Pimba”.
Faz
amanhã precisamente 34 anos e… ganhou o José Cid com “Um grande, grande amor”,
canção que depois alcançou um sétimo lugar em Haia no Concurso da Eurovisão
ganho por Johnny Logan, da Irlanda, festival em que o Luxemburgo se apresentou
em palco com um homem disfarçado de pinguim e…
O
gravador ainda funciona e conservo na gaveta algumas destas cassetes que
ouvidas agora e com a “elevadíssima” qualidade que apresentam, quase nos levam
a acreditar que os Festivais eram todos realizados sobre o tabuleiro metálico
da Ponte 25 de Abril em dia de buzinão ou de concentração de camiões.
Está
revelado o segredo dos meus auxiliares de memória em versão áudio, cassetes que
ainda visito de vez em quando no Panteão das doces memórias para onde foram
depois de assassinados pelo Youtube.
Só que o Youtube não tem o som
das panelas e dos tachos lá de casa, e o tempo faz com que até dessas coisas
tenhamos saudades.
Comentários
Enviar um comentário