O fermento e as cinzas
Se
esta vida são dois dias, vantagem inequívoca para o Carnaval que são três com muito
mais animação, ainda que esta resulte quase sempre do benefício e do alto patrocínio
da ilusão.
Como
se a vida não estivesse ela própria totalmente à mercê da ilusão, e não fossem
maiores e perfeitamente irresistíveis, esses momentos em que auto-suspendemos a
“enfatuada” e bacoca racionalidade para nos entregamos sem limite àquilo que queremos
muito, e que por tanto querermos, adquire um onírico estatuto?
A
vida toda suspensa pelo prazer de um momento na vertigem irreflectida do “sim”
a um amor; na emoção indescritível de um beijo; no desejo escondido num secreto
abraço; no silêncio que grita e transpira paixão; na mão trémula e suada que
por um gesto de entrega, fala de amor; no olhar que nos denuncia e nos faz
pertença do outro; na mensagem que convoca todas as palavras tontas só para falar
de amor; no coração traçado a canivete no tronco de uma árvore do jardim; na
poesia declamada à luz ténue do luar e ao ritmo arrastado das ondas do mar; no simples
malmequer roubado ao campo; no vaguear sem rumo com o pensamento entretido em
coisas bem mais importantes do que saber para onde vamos…
Consequências?
O
ciclo do tempo impõe hoje o fecho da folia, o pendurar de todas as máscaras, o
desligar das luzes, o jejum e a abstinência do riso, da cor e da música.
É
Quaresma, e esta Quarta-feira tem apelido de cinzas e fala-nos do pó como o
nosso inevitável destino ao cruzarmos a soleira da também mais do que inevitável
morte.
Na
vida, quem não sentiu já o gosto amargo e a dor das cinzas no regresso à fria racionalidade,
no rescaldo e na ressaca de um momento da mais pura ilusão?
Quem
não chorou já a saudade de um perfeito e às vezes tão demasiado fugaz momento
de amor?
De
aqui a quarenta dias, os sinos repicarão e voltarão a falar de festa, haverá
mais flores coloridas a “temperar” o intenso viço dos campos, o sol brilhará intensamente,
será primavera e o tempo parecerá cantar “Aleluia” na ressurreição de Deus ou então
da própria vida; distinção impossível de realizar para os Homens que têm fé.
Não
há Quaresma que não conduza às “Aleluias”.
Também
a dor da morte de um grande amor é condição essencial para que um outro muito
maior possa chegar fazendo drenar o primeiro para o sepulcro da nossa História.
Afinal,
não há cinzas do luto de uma ilusão que não possam ser na vida fermento de uma
nova esperança.
Assim
nós nos deixemos ir pelo ciclo do tempo...
Acreditando.
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