As estrelas da tarde
A
necessidade de preparar o jantar tendo o frigorífico ao jeito da montra de uma
ourivesaria depois de um assalto, convoca-me em alguns finais de tarde para o
Pingo Doce muito perto do meu domicílio, e ainda hoje hesito entre classificar estas
incursões como uma revisão da “Caderneta de Cromos” ou a entrada numa retorta,
coluna de destilação e tubo de ensaio de um verdadeiro experimentalismo social
e comportamental.
A
visita até estava a correr bem até ao ponto em que na fila para o pagamento
encontro um pai e uma filha adolescente obesa, com manifesta astenia e vestida
a conselho do seu pior inimigo, em diálogo que aqui reproduzo:
-
Faz o favor de ires ali buscar uma caixa de recargas para a máquina de café.
-
Ora…
Dá
um ar desengonçado ao quadril e acrescenta:
-
E porquê eu?
-
Porque eu estou a mandar.
-
Ai que chato… Eu não sei quais são.
-
São as mais baratas.
Grita
o pai que estica a mão direita e diz:
-
E eu dou-te o chato… com um belo par de estalos.
-
Não sei quais são. Já disse.
-
Não sabes ler?
-
Ai… Estou de férias. Não me obrigue a ler alguma coisa, por favor. Até Setembro
não leio nada.
E
falam alto para assegurar que semelhante pérola de diálogo é partilhada com
todos os presentes.
Eu
já desconfiava do estatuto de intelectual que aquela jovem com ar de “matrioska”
de dentro de quem poderiam sucessivamente sair mais cinquenta figuras idênticas
mas de menores dimensões, mas fico agora com a certeza de que a cabecinha nem
para ler as etiquetas serve, sendo por certo destinada apenas às madeixas que
mesmo após uma dissertação das minhas colegas à hora do almoço, nunca
conseguirei saber se são Californianas ou Copacabana.
Mas
a rapariga lá traz as recargas, paga as compras e sai acompanhada pelo pai.
Chega
a minha vez, a funcionária da caixa passa os artigos, diz-me o valor da soma
que sendo menos de vinte euros, eu tenho de pagar em cash, e na pressa de me ver sair dali para fora “arranco” o talão
da impressora à minha frente, ouvindo imediatamente o apelo da operadora:
-
O “xô” tem de esperar. Assim fico baralhada e não consigo ver o troco que tenho
de lhe fazer.
E
ali, o rosto do “Pingo Doce – e venha cá” olha-me com um ar tão enjoado que
parece que subitamente foi atacada por uma infinidade de dores que lhe tomaram
o corpo.
Ou
seja, a intelectual da literatura especialista em etiquetas de supermercado já
saíra com o pai, mas deixou-me por aqui a Matemática, um verdadeiro e “simpático”
Einstein ao serviço da Jerónimo Martins.
Passo
a confiar tanto naquele cérebro que conto e reconto o troco antes de sair da
loja e de agradecer o ar da rua, muito mais fresco e sem os aromas destas
conversas de altíssimo nível.
De
volta a casa aconchego o frigorifico que fica mais decente e mais capaz de
receber uma visita da mãe, ponho o jantar em andamento e sento-me por momentos
no sofá a ver as notícias.
Salvação
nacional.
Os
três partidos que patrocinaram a nossa actual situação em sucessivos anos de
governação com o tempero da incompetência estão a negociar um acordo para
salvar o país, seguindo a sugestão do Presidente da República que também já
governou o país durante 10 anos.
Não
sei porquê mas esta fórmula de pedir às bactérias, aos fungos e aos vírus que
se juntem e se entendam para resolver uma infecção muito grave num doente
moribundo, não me parece muito eficaz.
Pela
sua própria natureza são agentes nocivos e nunca farão parte de uma solução,
para além de que todos juntos e reunidos num organismo doente, a sua acção é
bem pior de que a de cada um por si. Potenciam-se na patogénese.
Enquanto
vou observar os ovos que cozem para poderem ser mais tarde incluídos no meu Salmorejo, penso na minha experiência
Pingo Doce e, talvez inspirado no cozinhado, entro rapidamente no dilema do ovo
e da galinha: temos os líderes que temos porque somos assim ou seremos assim
por obra e “mérito” dos líderes que temos?
Talvez
ambas as premissas sejam verdadeiras e sejam afinal elementos do terrível ciclo
da mediocridade acéfala e perniciosa em que estamos envolvidos.
Este
ciclo rompe-se apenas e só pela exigência. Desde a básica que cultivamos nas
nossas mais pequenas coisas até à mais “sofisticada” de quem ocupa lugares na
cúpula do Estado.
Exigência
com tolerância zero para a mediocridade.
Exigência
que aplicada a nós nos oferece a legitimidade de a reclamar na acção dos
outros.
Exigência
que aniquilará Portas, Passos e companhia, que durante dois anos nos pediram sacrifícios
em nome de uma salvação que mataram na hora em que fizeram emergir a sua falta
de nível… e fizeram uma birra ao jeito da “Matrioska” do Pingo Doce.
Definitivamente, só a exigência nos poderá devolver as estrelas para nos
acompanharem nos “mágicos cansaços” das tardes tranquilas a que temos direito.
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