Pelos caminhos de São Vicente
A
lenda fala de Vicente, valenciano feito mártir e santo pela força da fé, e da
cumplicidade e fidelidade absolutas dos corvos que desde Sagres e do Cabo a que
dá nome, até Lisboa, numa caravela que cumpriu a vontade de D. Afonso
Henriques, não deixaram jamais de guardar as relíquias do Santo que se tornou
padroeiro da capital Portuguesa.
Os
corvos serão para sempre, o brasão de Lisboa.
E
vicentina ficou a costa que foi cúmplice da viagem de São Vicente, essa mágica
linha feita de promontórios e areia que tem a virtude de casar o Alentejo e o
Atlântico.
Saio
de Sagres pela manhã subindo a estrada que me oferece esse duplo privilégio
de Alentejo e mar.
À
direita os sobreiros, a esteva e o infinito mar de amarelo do que resta dos
campos de trigo já ceifados. Aqui e ali, um intenso verde no prenúncio de uma
ribeira.
À
esquerda a persistência de azul que não desmente: o oceano.
E
há estradas assim como esta, em que o destino se pode tornar irrelevante e o
prazer maior está em percorre-las e fazer delas o nosso caminho.
Um
caminho para fazer no abandono dos relógios e apenas ao ritmo dessas
irresistíveis vontades de constantemente virar à esquerda rumo ao azul, e não
temer a poeira dos improvisados caminhos na descoberta de um ponto novo para
olhar o mar.
Cruzo
Odeceixe ainda sem fome.
Ou
será antes o instintivo impulso dos Sargos que já antevejo à mesa do Josué em
Almograve?
Uns
quilómetros mais à frente, é por aí que paro, percorro as ruas de Longueira com
as casas cor de rodapé de Alentejo na inédita companhia de um intenso aroma de
mar, e saboreio a sopa que tem Sargo e tem o “meu” pão no caldo do tomate e do
poejo, o mesmo poejo que dá gosto ao licor com que decido coroar o café.
Não
resisto a espreitar mais uma vez o mar, e muito mais reconfortado, sigo a “subida”.
Cruzo
o Rio Mira, passo Milfontes, a Serra do Cercal que um dia foi a chilena “Casa
dos Espíritos”, Alcácer…
Batem
as dezoito horas de domingo quando pela Ponte Vasco da Gama avisto Lisboa
envolta numa neblina que não deixa de ser sua, nestes dias que o calendário diz
serem verão, mas que afinal, da estação quente têm muito pouco.
Lisboa,
o meu destino que jamais será irrelevante e será sempre um porto de abrigo.
O
mesmo destino de São Vicente.
Eu,
sem corvos e sem caravela, mas de alma cheia.
Comprova-se
que os dias são feitos de caminhos, e os dias grandes são aqueles em que não
nos negamos a percorre-los convocando todos os sentidos e sabendo aproveitar
tudo o que de bom e único cada “estrada” tem para nos oferecer.
Até
mesmo quando o pó das aventureiras ousadias das traições ao GPS e à rota mais
previsível, nos obriga a uma rápida lavagem da viatura que a coloque
operacional para um recomeço de viagem.
Afinal, a pimenta do imprevisível dá aroma aos caminhos… e aos dias.
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