Praxes, não obrigado!
Somos
os mesmos dois de há trinta anos, quando precisamente em Outubro de 1984, o meu
pai veio comigo a Lisboa por alturas da matrícula na Faculdade de Farmácia da
Universidade de Lisboa, e até fomos juntos comprar um guia da Carris para me
ajudar a movimentar na cidade que em grande parte eu desconhecia.
Hoje
o meu irmão veio trazê-lo ao Campo Pequeno e agora vamos juntos a caminho da
Avenida Defensores de Chaves, quase na hora da consulta de urologia.
Sinais
dos tempos... e o ciclo da vida a funcionar neste “quem toma conta de quem”.
É
quinta-feira à tarde e junto ao semáforo cruzamo-nos com um grupo de estudantes
que solta palavras de ordem como se não fosse haver amanhã. Uns vão de capa e
batina, outros de calções, mas todos levam na mão, garrafas de um litro de
cerveja.
Mais
tarde irão dispor-se em fila à porta do touril, e já de longe vejo-os rastejar,
pôr a cabeça no chão, fazer flexões, etc.
Ao
passarem por nós torna-se bem audível a mensagem de uma estudante para um
caloiro:
-
Meu caloiro de m...
E
é um pouco difícil explicar ao meu progenitor, que tem a quarta classe mas que
nos educou na base de que há palavras impróprias para um relacionamento
saudável em família ou em comunidade, como é que uma certa “elite” do país faz
uso e abuso desta mediocridade linguística.
Vamos
caminhando os dois sem nunca nos calarmos, como é nosso hábito, tentando
encontrar nem que seja apenas um só aspecto positivo para as cenas degradantes
que vemos por ali com o alto patrocínio da cerveja de litro.
Não
encontramos.
Integração?
A
humilhação segrega e não ajuda a integrar ninguém.
Tradição?
É
legítimo que o tempo a corrija no sentido da dignidade.
Passar
um bom bocado?
Eu
nunca experimentei mas acho que beijar a calçada do Campo Pequeno não será a
actividade mais agradável e sugestiva.
Detesto
praxes e assumo-o convictamente não lhe reconhecendo como disse um único
benefício, que não seja possivelmente a satisfação muito pessoal de natureza sadomasoquista
dos seus intérpretes.
A
postura e estas práticas atentam contra a dignidade da pessoa e beliscam
decisivamente o bom senso e o sentido de responsabilidade que se exige a
instituições que no âmbito público ou privado se dispõem a formar cidadãos de
uma forma superior.
Para
a grande maioria dos jovens, entrar para a Faculdade é hoje bilhete para um
carnaval de Torres Vedras, mas mais excessivo, com a duração de três ou mais
anos passados debaixo de um disfarce de corvos alcoolizados.
E
apanhem-nos à saída dos cursos e vejam como conhecem melhor a graduação alcoólica
do Vodka do que o autor de “O Memorial do Convento”.
Voltando
há trinta anos...
A
Universidade tinha o apelo do conhecimento e da liberdade que ainda era mais
jovem do que eu.
Sem
capas que não as dos jornais que liamos e debatíamos à mesa da cantina.
Sem
batinas ou rótulos de qualquer “farda”.
E
sem praxes, que a solidariedade expressava-se na partilha dos caminhos, dos
livros e de tudo o que nos compunha os dias.
Claro
que também com a recomendação do meu pai:
-
A portar-se com juízo e a fazer-se um Homem que é para isso que aqui estás.
Vá
lá que a consulta atrasou e na hora de espera ainda acabámos os dois a recordar
esse mês de Outubro de 1984 em que eu ia resistindo a tudo até ao momento do
silêncio ao serão que quase sempre me fazia chorar.
Chorar
em segredo, está bem de ver.
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