Aquele dia em que eu comecei a morrer
Diz-se
em Vila Viçosa que pela noite, as corujas abandonam as torres do Castelo, do
Palácio ou das dezenas de igrejas e conventos, para vir pousar e piar nos
nossos telhados e chaminés, sempre que a morte de alguém próximo, está para
acontecer.
O
mau agoiro chega assim a voar por cima das nossas cabeças, mas pode chegar
também pelo pontapear das latas contra as pedras da calçada ou quando se mantêm
as pernas cruzadas sempre que os sinos dobram.
Superstições
à parte, a morte nos dias da minha infância tinha o ruído de um carro de mão
com roda de ferro a rolar sobre o granito dos paralelos da rua, transportando
uma urna a céu aberto que acabava sempre no domicílio do defunto, lugar onde
invariavelmente era feito o velório.
Desmanchavam-se
quartos e salas, importavam-se cadeiras das casas da vizinhança, cobriam-se os
espelhos, mantinham-se abertas as portas da rua para que entrasse uma
“multidão” de gente vestida de escuro, e havia sempre essa recomendação de
silêncio para as nossas brincadeiras na rua, silêncio que por vezes nos
permitia escutar, perpassando paredes, o ruído mais ou menos abafado do choro,
mais das mulheres, do que dos homens.
Depois,
na hora do funeral, as urnas saiam pelas portas ou pelas janelas, por vezes com
a ajuda dos bombeiros sempre que de um primeiro andar se tratava, e eram em
ombros transportadas até ao cemitério, a pé, não deixando nunca de se fazer uma
última entrada na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, ao Castelo.
Passava
depois o ritual para a responsabilidade de um coveiro que tinha a alcunha de
“Gira já”, porque se dizia que um dia, estando muito bêbedo e tendo
inadvertidamente trancado no cemitério uma senhora, quando esta se aproximou da
grade do portão, chamando-o, para que ele lhe abrisse a porta, ele terá
respondido:
-
Gira já para a cova!
E
para mim, a morte foi assim, esta sucessão de factos desprovidos de muita
emoção, até ao dia em que o homem do carro de mão parou à porta da casa do Tio
João, nesse dia em que a casa se encheu de gente e a tampa da urna ficou por 24
horas encostada à parede de uma pequena sala onde nós habitualmente comíamos.
Passaram-se anos e nunca mais a memória deixou de me trazer a recordação desse triste
pedaço de madeira envernizada e com um crucifixo de metal, ali naquele espaço,
antes sempre tão cheio de boas e valentes gargalhadas.
Aos
onze anos sofria o primeiro rombo no núcleo duro dos meus afectos e
instintivamente perdi a noção da imortalidade que a infância até aí me
oferecera.
Desde
esse dia, cada um que partiu levou sempre uma grande parte de mim, por muito
que a memória me permita guardar esses dias feitos de cumplicidades e dos
indestrutíveis afectos que me moldaram o ser: herança e privilégio.
E
o pavor que na infância nos causa a ideia da nossa morte, dissipa-se ao longo
da vida, não só pela natural aceitação de um desfecho inevitável do qual a
idade nos vai aproximando, mas também porque já fomos morrendo em cada um que
nos deixou e partiu.
O
que nos prende aqui reduz-se a cada um que parte, por muito que a vida seja
generosa e nos vá brindado com novos e poderosos afectos.
E
tudo isto porque por muito intensa que seja a fé e a aceitação da passagem para
o “paraíso”, humana será sempre a dor do adeus a quem amamos, no local onde
fomos imensamente felizes.
Hoje
pela manhã, ao tomar um café na pastelaria perto de casa, a azáfama da manhã
abstraíra-nos a todos os comensais, do excessivo realismo com que a jornalista
da TVI relatava a morte da namorada do atleta sul-africano Pistorius.
A
todos, excepto a uma criança de apenas cinco ou seis anos, que de mochila
cor-de-rosa às costas aguardava em pé ao lado da mãe, enquanto esta bebia o seu
“abatanado”.
E
num daqueles raros momentos em que todos fazemos silêncio em simultâneo,
ouve-se a voz da criança:
-
Oh mãe, quando é que eu vou morrer?
A
mãe disfarçou o incómodo da pergunta acelerando e terminando o café, arrastando
imediatamente a miúda porta fora, por certo na esperança de que o ar da manhã
lhe dissipasse as dúvidas e não a obrigasse a dar-lhe uma resposta minimamente
credível.
E
eu, sem tempo e sem à vontade para lhe responder, fi-lo mentalmente na viagem
até ao trabalho, respondendo simultaneamente a mim próprio porque como tantas
vezes acontece, as crianças, sem filtros, limitam-se apenas a verbalizar as
nossas inquietações.
E
partilho a resposta convosco:
-
Começamos a morrer demasiado cedo.
E eis como um “escritor de vidas”, como me apelidou recentemente o
afecto de um amigo indispensável, um dia, inevitavelmente, tem de escrever
sobre a morte.
E não, não é nada fácil , quando nos toca a nós
ResponderEliminarRUI PEREIRA