Os Anjos acabam sempre por ir morar no Céu
Não
me recordo exactamente da data mas sei que foi algures num final de tarde de
Abril de 2005.
Eu
estava a trabalhar num congresso no Porto e terei manifestado um entusiasmo tal
pela presença da fadista Kátia Guerreiro na cerimónia de abertura do congresso,
que uma colega que me acompanhava e que jamais tinha ouvido falar da fadista e
muito menos alguma vez se tinha disposto a ouvir fado, por curiosidade, me
acompanhou e sentou-se junto a mim na última fila da enorme sala já repleta de
gente.
Acreditei
que ela aguentaria o primeiro fado e de que ao segundo inventaria uma desculpa
e sairia da sala.
Vi-a
sorrir aos primeiros acordes da guitarra Portuguesa tocada pelo Paulo Valentim,
e ao segundo fado…
“Prendo
o mundo nos meus braços
Quando me abraças nos teus
E por momentos escassos
A terra dá-nos os céus.”
Quando me abraças nos teus
E por momentos escassos
A terra dá-nos os céus.”
Não saiu. Segredou-me ao ouvido:
- Fantástico.
Deixámo-nos ficar na cumplicidade dos
sorrisos, dos olhares e da comoção, no ambiente de silêncio que a alma nos
impõe devotar ao fado.
“Pensa
só no nosso amor,
Vem, dá-me a tua mão.
Sobe comigo a encosta,
Porque quando a gente gosta
Ninguém cala o coração.”
Vem, dá-me a tua mão.
Sobe comigo a encosta,
Porque quando a gente gosta
Ninguém cala o coração.”
Partilhámos vivamente as palmas em
cada pausa, naquele bater de palmas feito ao ritmo e ao jeito de quem não
consegue calar o coração.
“Quando
à noite desfolho e trinco as rosas
És tu a primavera que eu esperava”
És tu a primavera que eu esperava”
E foi da primavera que falámos os dois
à saída da sala após o último fado…
“Eu quero lançar raízes
E viver dias felizes
Na outra margem da vida.”
E viver dias felizes
Na outra margem da vida.”
…Partilhando
o gosto ou o destino dos que sabem que os dias felizes estão muitas vezes na
outra margem da vida, naquele território onde vivem os apátridas de alma,
aqueles que lutam mais, pelo facto de não terem uma vida fácil e previsível,
mas que têm o raro privilégio de provar o inesquecível e viciante gosto da
ousadia.
E
por estes fados ao fim da tarde, se criou entre nós uma cumplicidade que foi
alimentada a posteriori em inúmeras
conversas e partilhas.
A
inquietação de quem jamais se rende, de quem luta arduamente e de quem não
abdica do seu direito a ser feliz.
Não
me recordo exactamente da data mas sei que foi algures a meio da tarde de um
dia de Maio de 2006.
Nem
sequer me recordo do nome da aldeia entre a auto-estrada A1 e Cantanhede, onde
à porta de uma pequena ermida me fui despedir da minha colega que partira
subitamente, privando-me da sua companhia em tantos fados que ainda haveria
para escutar nos finais de tarde das nossas cumplicidades.
Recordo-me
de um sol radioso e de um intenso cheiro a flores do campo, naquele estranho
momento em que os nossos olhares, mais do que tristeza, se revelavam estranhos
e incrédulos pelo adeus tão inesperado a quem transpirava apenas vida.
E
foi por certo por tanta vida, que o Céu veio pronto recrutar um Anjo feliz.
A
partir desse dia, nas muitas vezes que, para norte ou para sul, passo na A1, na
saída de Cantanhede, não resisto a calar a voz dos fadistas que me acompanham
em grande parte das viagens, e rezo ao Céu e aos seus Anjos.
Hoje
de manhã, de volta ao sul, foi mais uma vez assim.
E
o campo, de um intenso tom verde salpicado pelo amarelo vivo das mimosas no
auge da flor, pareceu sorrir-me.
Telegrama
do Céu e dos seus Anjos?
Não
sei.
Pouco
importa.
Se tanto me apeteceu viver com garra e romper todas as margens.
SEm palavras , lindo
ResponderEliminarparabens
Rui Pereira
Intenso!
ResponderEliminarMagnifico e muito marcante.
ResponderEliminarEu acredito que cada um tem o seu anjo eu tenho o meu bem lá no Céu.
Chamo-lhe Anjo da Guarda quem me dera te-lo cá na Terra ao pé de mim.Infelizmente partiu há muitos anos.
A vida é assim e temos de saber viver com estas mágoas que a vida nos trás.
M. Pereira