Eu, um vagabundo
A
manhã de Lisboa cheira a um irreverente verão pela bênção do sol rebelde e
mouro que insiste por estes dias em contrariar o Outono que o calendário já
trouxe há semanas.
O
Rossio fervilha de turistas que em pequenos grupos caminham em direcção às
Portas de Santo Antão e que inevitavelmente se dispõem em semi-circulo e
prestam vassalagem às pequenas montras que ladeiam a Ginjinha do Eduardinho.
Vejo-os
`através de uma das janelas do Palácio da Independência e estou na sala
baptizada com nome do poeta dos meus poetas: Fernando Pessoa.
Já
estão no pátio do palácio e entrarão de aqui a pouco na sala, os homens e as
mulheres que vagueiam errantes pela cidade e a quem hoje eu e a Joana nos
quisemos juntar.
São
curtíssimos os minutos até ao momento em que estão sentados em frente a nós
para que a pretexto de uma conversa sobre saúde brindemos com afectos na festa
do encontro de todos.
Vagabundos,
pessoas sem-abrigo, toxicodependentes, alcoólicos?
Pouco
contam aqui os detalhes circunstanciais se nos une o essencial e o mais
importante: sermos gente.
Somos
todos iguais na partilha desta raiz.
E
os conselhos sobre a aspirina ou o sabonete valem muito pouco nestas horas em
que são os sorrisos, os apertos de mão, os abraços, os beijos e as palavras de
afecto com o lustro dos olhares, o que mais conta e o que faz realmente a
festa.
O
valor inquestionável dos afectos na vida da gente posta à margem e abandonada à
solidão e ao vazio das calçadas de Lisboa, a única “casa” que lhes resta.
Ali,
todos juntos nesta partilha, a minha vida, onde sobram casas, ganha também um
sentido maior.
E
talvez nunca como hoje tenham feito sentido os anos passados na faculdade a
aprender os detalhes do valor do ácido acetilsalicílico.
No
palácio onde Portugal se reinventou em 1640 e na sala do poeta que pela
Mensagem cantou a glória do país, a prova do tão simples que nos faria
diferentes e maiores.
Bastaria
apenas que a alma emergisse destes imbecis dias do “ter”.
Devolvo-me
ao sol de Lisboa pelas três da tarde que continua quente e remando contra os
turistas que continuam o seu percurso, impele-me a vontade que entre na Igreja
de São Domingos, ali tão perto.
Também
está pejada de turistas quando me ajoelho e rezo naquele estranho ambiente criado
pelo fogo na sua passagem pela igreja mais rica de Lisboa, o templo que foi
anfitrião dos casamentos da dinastia de Bragança.
O
fogo foi de facto cruel e marcou-a para sempre sem conseguir no entanto apagar-lhe
a nobreza que ainda transpira.
Os
templos, cúmplices das pessoas na preservação do que é nobre e essencial, por
maior que seja o “fogo” que nos empurre para as ruas frias da noite de Lisboa.
Saio
passados alguns minutos e também eu me faço à Rua das Portas de Santo Antão,
agora seguindo a rota dos turistas.
E sou eu, cidadão anónimo na tarde quente de Lisboa, um eterno vagabundo
buscando sempre um sentido maior e melhor para a vida.
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