O dia mais curto?
Sinto
o sol nascer por detrás do monte, mas é sábado, e é apenas quando ele já brilha
com uma intensidade tal que me tolhe a visão, que abro as portadas e me apronto
para viver aquele que o calendário diz ser o dia mais curto do ano.
Estou
na Sertã e deixo-me ir subindo as serras, entre amigos e entre pinhos,
alimentando o olhar desses montes que a fé dos Homens coroou de ermidas ao
redor das quais os coretos denunciam festas em Agosto ou Setembro: Senhora da
Confiança, Senhora do Pranto…
E
com o benefício da internet lá vou conseguindo saber as lendas por detrás das
ermidas e das evocações dadas a Maria.
Lembro-me
de um restaurante em Cardigos onde o Padre Armando uma vez nos levou a jantar,
precisamente a última vez que estivemos juntos, e vou até lá desta vez para
almoçar.
Fico
ao lado da mesa redonda onde então nos sentámos junto a uma enorme janela, que
na altura, sendo noite, não reparei que tinha vista para um olival. A mesa está
vazia e por entre as saudades desse dia, tenho hoje tempo para admirar a
paisagem onde uma cabra anda desvairada a tentar trepar às oliveiras.
Consigo
sorrir por entre a saudade.
Os
objectos, as coisas sobrevivem-nos sem que continuem a ser banais depois de os
termos associado aos nossos afectos.
Aquela
mesa tem para mim o valor de um momento único, conta-me uma história.
E
o que acontece às mesas acontece aos dias…
Sigo
subindo aos montes na cumplicidade dos pinheiros e também de alguns sobreiros e
de repente estou algures dentro de uma tenda improvisada como Feira de Natal
com um professor a explicar-me um projecto desenvolvido para ajudar à
integração de crianças raras.
Cultivam
plantas medicinais que depois comercializam.
Falamos
iluminados por um fortíssimo licor de medronho e sou eu com a ajuda dos meus
dedos que ajudo o Francisco, um rapaz aí pelos doze anos, a fazer a conta de
três mais três pois não resisti e comprei chás (para melhorar a memória e
aclarar a voz, imagine-se).
O
Francisco consegue e sorri muito quando lhe dou os parabéns e lhe ofereço a
minha mão para chocar com a sua num momento de celebração.
Não
sei se conseguirei beber os chás pois enquanto os pacotes estiveram pela
cozinha, aquele sorriso continuará bem vivo em mim.
O
sol está a despedir-se e eu faço-me à estrada que me irá devolver a Lisboa.
A
despedida do astro-rei deixa o horizonte vermelho e depois em tons de ouro que
o Tejo não resiste a copiar fazendo-se espelho e reflectindo-os precisamente no
momento em que uma curva da estrada me mostra a cidade de Abrantes.
E
cai a noite.
Ao
telefone uns minutos mais tarde, pergunto ao meu amigo António como lhe correu
o dia mais curto do ano.
E
ele responde com mestria:
-
O dia ainda não acabou.
É
um facto.
Porque
não é o sol que define os dias e lhes dá dimensão, somos nós na intensidade e
no brilho com que os vivemos.
E
hoje, sentado a esta mesa de onde vos escrevo, tenho a sensação de ter vivido tudo
menos um dia pequeno. Foi um dia grande e cheio de luz, mesmo que apenas com um
pouco menos de sol.
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