Retalhos de uma noite fria
O frio era o de sempre, reconheci-o
perfeitamente quando saí do carro e atravessei o adro com a minha mãe, aquele
sopro gelado que não se atemoriza com cachecóis, gorros ou os melhores e mais
pesados sobretudos, o frio do Alentejo que se faz acompanhar de um estranho
fumo quente em cada palavra que se solta da nossa boca.
A igreja também é a mesma, hoje sem as
gigantescas cortinas douradas e azuis que a decoravam por estes dias, mas com
malmequeres, um doce e suave toque do campo, a dar verdade e simplicidade ao
altar da Senhora da Conceição, a quem viemos no segundo dia da novena que nos
irá levar à festa do dia 8 de Dezembro.
As pessoas são menos que antes e
diferentes sobretudo no trajar, já não vendo eu por aqui os xailes e os lenços
que as mulheres usavam na cabeça, adereços que juntamente com as samarras e os
capotes dos homens ofereciam ao ar um estranho e intenso aroma de naftalina.
Ganhámos em conforto, e isso é um bom
presente dos tempos, embora eu não consiga evitar as saudades do momento em que
a avó Natividade me puxava para ela e partilhava comigo o seu xaile sempre que
saiamos do Castelo à porta da Torre de Menagem e as correntes de ar ainda nos
faziam sentir muito mais frio.
Também reconheço muitas das caras que
hoje estão por aqui, agora já enrugadas e encimadas por cabelos grisalhos (ou
pintados, no caso das senhoras que sempre têm essa hipótese de camuflagem).
Andámos juntos na escola há quarenta anos, partilhávamos as brincadeiras, a
cumplicidade de tantos disparates típicos da infância, e encontrávamo-nos por
aqui trazidos pelas mãos dos nossos pais e avós que assim nos passavam uma valiosa
herança de fé.
Por isso, é natural que a fé também continue
igual fazendo-se soar sempre que em uníssono rezamos Ave-Maria.
O padre falou de amor, e falou pouco,
que amor é mais coisa de se sentir do que de ser falado.
E tantas vezes se diminui a sua
grandeza quando o tentamos pôr na forma de palavras…
E por, e pelo amor, deixei ir o
pensamento ao sabor do coração quando o órgão começou a tocar e uma voz se
soltou do coro alto para nos oferecer aquela música que dá à noite um tom de
magia. E para mim, especialmente, o Laudate Dominum, de Mozart.
No altar e como sempre, a Senhora da
Conceição, olhando-nos e bebendo dos pensamentos que aqui nesta noite lhe
trouxeram as nossas vidas. Nós, o nobre povo que nunca deixará de vir aqui,
diferentes dos que nos antecederam, mas iguais na expressão deste amor
Calipolense que não se equipara em grandeza a mais nenhum outro.
A noite continuava fria quando saímos
mas sentia-se menos a aragem por mérito dos beijos e dos abraços que fomos
soltando entre nós e por entre as memórias desse tempo em que éramos crianças.
Vim com a minha mãe e demos boleia à
D. Alzira, uma vizinha de sempre da minha avó Natividade, que fomos levar à rua
onde a avó sempre viveu e onde temos agora a nossa casa, a Rua da Pascoela.
Lembrei-me da minha avó e senti
saudades dela e do seu xaile quando lhe passámos à porta.
Mas deixei a rua a sorrir pois
recordei-me que sempre que nos via por ali a brincar, a mãe da D. Alzira, uma
anciã muito bem-disposta e brincalhona, sempre nos dizia:
- Tu tens cara de batata assada.
E a sorrir terei adormecido com esta
única e agradável sensação de estar em casa.
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