Pensando em ti
Num
dos roupeiros da casa de Vila Viçosa está pendurado um casaco de criança num
tom cinza escuro e um forro vermelho de uma “escandalosa” pele (artificial,
claro). Tem um capuz recortado no seu topo a fazer um muito pronunciado “V”.
Oferecido
pelo meu tio Joaquim num Natal algures entre 1972 ou 1973, foi por certo ao
longo de toda a minha vida, a peça de roupa que vesti que teve mais impacto e
sucesso junto dos meus amigos pelo facto de me ter transformado numa autêntica
versão porta-chaves de um Pai Natal, para além de que não havia frio algum que
por ali entrasse nestas manhãs de inverno carregadas de geada.
Vi-o
novamente no passado fim-de-semana e achei-o estranhamente pequeno, minúsculo
mesmo, quando confrontado com as memórias que tenho de não preencher totalmente
o espaço das mangas, e de como ele, assim “enorme”, quase me impedia de colocar
às costas a pasta da escola que também tinha cor vermelha e tinha um decalque
do Pato Donald.
Acontece
sempre isto quando o tempo nos faz crescer ou quando aproveitamos bem o tempo
para crescer.
Os
casacos, assim como todos os desafios e dificuldades, acabam por ganhar o
estatuto de ridiculamente pequenos.
Os
casacos, assim como as paixões que tanto nos fizeram chorar e nos tiraram o
sono, trinta anos depois fazem despoletar um sorriso que expressa em nós
próprios um certo sentimento de ridículo e nos cola aquele selo de “Meu Deus,
que tonto…”.
Os
casacos, assim como as dores, as lágrimas, os gestos tristes, as palavras
feias…
E
se este efeito se verifica para as coisas menos positivas, o certo é que o
mesmo se passa em relação às positivas e fantásticas da vida. Todas elas se
apagarão também e ficarão como imagens ridículas e pequenas de uma felicidade
que já passou e que nos pode até oferecer aquele estranho e doloroso sabor a
saudade.
Tudo
isso, se não acompanharmos o tempo fazendo-as crescer ao jeito de quem alarga
as mangas do casaco para que ele nos vá servindo e nunca deixe de nos proteger
do frio.
Um
dia, uma das minhas escritoras favoritas, Marguerite Yourcenar, afirmou: “o
tempo esse grande escultor”.
Quem
sou eu para desmentir a Madame Yourcenar?
Ela
tem razão.
Mas
também é certo que o tempo só esculpe aquilo que as nossas mãos expressam por
imposição da nossa vontade, do nosso querer.
E
esculpir no tempo é viver intensamente, desprezando e abandonando ao terrível
desgaste do próprio tempo, tudo o que não presta, e apostando em tudo aquilo
que nos faz felizes e nos faz maiores, mesmo que nem sempre tenha o embrulho
mais apelativo.
Isto
tudo pensei hoje pela manhã em frente ao espelho e enquanto com a máquina
esculpia a barba.
Pensando
em ti.
Sim.
Em ti.
Excelente. Parabéns.
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