Ora et labora
Escrevo
junto à pequena janela com portadas de madeira de onde avisto o Rio Sella e lá
ao fundo uma enorme montanha verde. Estou alojado na Abadia de San Pedro de
Villanueva, perto de Cangas de Onís, nos Picos da Europa.
Fui
muito bem recebido pelos seis monges que habitam este lugar e que seguem a
regra de São Bento, “Ora et Labora”, e que nem falar podem. É mesmo só: orar e
trabalhar.
Sou
peregrino, sigo para o Santuário de Covadonga e em troca do meu trabalho dão-me
por estes dias, esta pequena cela onde posso dormir, e também um prato de
comida que é quase sempre feijão e que é preparado pelo monge de serviço à
cozinha durante este mês.
Tomamos
banho na água gelada do rio e para “pequenas lavagens”, temos um poço que bebe
da água do rio e que está aqui mesmo ao lado da cela.
O
sino toca muito cedo para as orações da manhã que partilho com os monges na
igreja que em relevo e na fachada tem animais e Homens em poses que salientam o
falo e a sua utilização demasiado carnal e “imprópria”, lembrando tudo aquilo
que não pode ser feito aqui dentro. A castidade é uma imposição e quem pratica
semelhantes actos fica fora da igreja e da “salvação”.
A
vida por aqui é simples e demasiado previsível. Talvez amanhã possa fazer algo
de diferente e ir até ao rio tentar pescar algum peixe.
Já
me avisaram para não me afastar muito do mosteiro pois há ursos nas montanhas e
corro o risco de ser atacado.
Tivesse
eu escrito este texto no Século XII e os parágrafos anteriores fariam sentido.
Hoje poderiam ser o mote para uma sequela de “O Nome da Rosa” com nova
convocatória para o Sean Connery ou o F. Murray Abraham e foram muito
possivelmente o mote para vocês por instantes pensarem que eu tinha
enlouquecido.
Puro
exercício de imaginação enquanto olho efectivamente o rio e a montanha a partir
da janela de portadas de madeira… mas do quarto que me alocaram no Parador histórico
onde hoje me instalei e do qual tentei conhecer um pouco a história.
Entrei
pela mesma porta de todos os visitantes, de agora e de antes, mas ninguém se
interessou pelo trabalho que eu pudesse acrescentar ao dia-a-dia do convento.
Mostrei o Cartão de Crédito e… livre acesso.
Sinais
dos tempos… o crédito bateu o trabalho por goleada.
A
comida é óptima, hipercalórica e preparada por especialistas que sendo
espanhóis compuseram um pouco as regras e substituíram o “Ora et labora” pelo “Disputatio
et labora”. Falar é definitivamente algo que não podem deixar de fazer, e ainda
por cima num tom muito alto.
Nem
eles e nem eu.
Mas
o feijão segue nas ementas e a “fabadas” são excelentes acompanhadas pela
cidra.
A
oração também já não impera até porque os sinos da torre já não tocam e não
podem ser reparados pois há uma comunidade de morcegos que habitam a torre e
que estando em vias de extinção não podem ser incomodados.
Também
já não há ursos nas montanhas. Alguém deveria ter tido o cuidado que hoje temos
com os morcegos.
Cada
quarto tem uma casa de banho com águas correntes quentes e frias e não há
limitações para as lavagens. O cheiro nas áreas comuns atesta que a “malta” é
asseada.
E
quanto à castidade?
Juntamente
com a presunção e a água benta, fica ao gosto de cada um “tomar” a que quer na
sua respectiva intimidade.
Mas
com as anunciadas promoções de banquetes para pedidos de casamento, bodas e
baptizados, sinceramente não me parece que o Parador esteja interessado
comercialmente num excesso de castidade que lhe retire mercado.
E
assim se passou o penúltimo dia de férias antes do regresso à pátria.
Portugal,
esse imenso “mosteiro” onde São Bento também dita as normas, neste caso não
verdadeiramente o santo, mas sim o palácio onde tem assento o Primeiro-Ministro
e tem sede o Parlamento.
A
regra é um pouco diferente e será qualquer coisa como “labora et ora” ao jeito
de “trabalha e reza para que ele não te falte”, à qual se associa obviamente a
do “come e cala” que também existia por aqui.
Castidade
existe pouca no… “lixar” do povo, e um passo em falso é exposição ao risco do
ataque dos “ursos”.
Pensando
melhor, o Século XII não está assim tão longe a há algo de medieval no Portugal
da Troika.
Venham então mais férias…
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