A estirpe e as virtudes
Quase
sempre sentado no Estádio da Luz, não tenho a percepção de como Lisboa fica tão
vazia à hora em que joga o Benfica. Do Conde Redondo e até Alcântara, é meu e
só meu, o asfalto que cruza o Rato, a Estrela e a Infante Santo, como se a
cidade tivesse sido desenhada só para mim e como se as luzes que “incendeiam” a
Basílica estivessem ali apenas para me sorrir no instante em que eu passar.
Não
é fácil levar-me a “trair” o Benfica, ainda por cima com um cartão no bolso que
me daria livre acesso ao meu confortável lugar e daí aos golos do Gaitan e
companhia.
Levo
comigo no carro o “móbil do crime”: eu e mais quatro amigos que entre o
Castelhano, o Português e o inevitável “Portulhol” ou “Espanholês”, damos
integralmente corpo à ideia de uma identidade ibérica que vagueia pelo mundo
como hoje pelo asfalto só nosso de Lisboa, qual “Jangada de Pedra” de José Saramago.
O
silêncio morreu no instante em que nos abraçámos na recepção do hotel e ficou definitivamente
enterrado no momento em que os copos foram preenchidos com o néctar vindo da
Amareleja, terra do Alentejo mas sem fronteiras e com tanto… e com o sol da
Extremadura e da Andaluzia.
A
Maria del Mar está viciada em Eça de Queirós e em “Os Maias” que leu há pouco em
Sevilha no clube de leitura em língua Portuguesa. Tem um bloco e vai apontando
todos os detalhes dos espaços da obra que insiste em visitar e fica desiludida
quando lhe explico que já quase não há quintas em Benfica e nos Olivais.
Mas
vai levantar-se cedo para ir sentir o ambiente da Rua das Janelas Verdes onde
se situava o Ramalhete, a residência lisboeta dos protagonistas e cujo nome
derivava de um painel de azulejos com desenho de um ramo de flores.
“O que ainda tornava a vida tolerável era de
vez em quando uma boa risada. Ora na Europa o homem requintado já não ri, –
sorri regeladamente, lividamente. Só nós aqui, neste canto do mundo
bárbaro, conservamos ainda esse dom supremo, essa coisa bendita e consoladora –
a barrigada do riso!”
Assim
falava Eça.
E
por sobre o asfalto ou à mesa com o “calor tinto” da Amareleja e o entretanto
chegado, Bacalhau à Brás, que um bom Espanhol nunca dispensa em terras lusitanas;
as “barrigadas de riso” acesas por tantas memórias de quase dezasseis anos de
amizade soltam-se e invadem sem controlo todo o espaço, provando que se existe uma
identidade ibérica, a “barrigada de riso” faz inevitavelmente parte do seu “código
genético”.
Rimo-nos
de nós; dos amores e dos desamores que vamos coleccionando; da generosidade
expressa no aumento da área de nós próprios com que brindamos o universo mesmo
pagando mais por um tamanho de roupa XXL; da hipertensão, da diabetes e das
maleitas de coluna que nos dificultam o simples levantar da cadeira para ir à
casa de banho…
Nem
a crise e nem as histórias e aventuras de “Rajoy e Passos na Terra dos
Banqueiros” nos conseguem azedar o vinho e calar o riso que continuou à solta
na livraria “Ler Devagar” mesmo quando o “devagar” se aplicou mais à ingestão
do “Gin Tónico” do que a qualquer outra leitura para lá do que está expresso
nas cumplicidades, nos gestos e nas palavras ditas.
Lisboa
continua deserta e só nossa quando voltamos ao Conde Redondo pelo mesmo caminho
de antes.
Agora,
a cidade repousa sobre a vitória por três golos do Benfica e nós continuamos a
rir.
Eu,
Soraya, Chelo, Luís e a Maria del Mar que na rota de “Os Maias” apanha outra
desilusão quando lhe explico que “O Tavares” não é restaurante para gente tão
demasiado normal como nós.
O
silêncio regressa depois dos beijos e dos abraços à porta do hotel, e Lisboa é agora
sim verdadeiramente só minha quando subo às Amoreiras para sair pela A5.
Ouço
António Zambujo…
E
numa noite ibérica com Eça, assaltam-me as palavras de Miguel de Cervantes:
"A
estirpe herda-se e a virtude conquista-se; e a virtude vale por si só o que a
estirpe não vale."
O
que são as fronteiras e a estirpe perante as virtudes da amizade?
Muito
pouco.
Quase
nada.
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