O caminhar feliz de um homem abraçado a palavras de amor
A
manhã está húmida e envolta numa espécie de chuva envergonhada que incomoda muito
pouco, “borrifos” que parecem até ter trazido o benefício de alguma trégua ao
frio que às primeiras horas do dia quase nos consegue enregelar todos os ossos.
Vou
em passo seguro e sinto como as cidades se nos entregam e se fazem nossas
quando as percorremos assim no pleno gozo da liberdade de uma manhã de sábado.
Caminho
há cerca de um quarto de hora e sabe-me muito bem quando transponho as portas e
me sento no velho café que tem montra para a azáfama do mercado das flores.
Quando
preparava a minha primeira visita a Amesterdão, o meu amigo Pedro Marcelo
passou-me uma lista de locais a visitar, e estava lá este café.
Penso
no Pedro.
É
interessante como as pedras, as cidades e os lugares, nos sobrevivem, não
deixando porém de preservar de nós, infinitas memórias guardadas por vezes em
mínimos detalhes, memórias que se soltam assim no meio de improváveis dias de
passeio.
Acho
que da sua nuvem, por certo bem animada, o Pedro também me quis acenar. Sinto-o
ao sair e ao dar conta que a torre sineira junto ao mercado dá a hora certa com
os sinos a tocarem o hino da Eurovisão, aquela música que antecede os festivais
e que é o prelúdio do “Te Deum” de um compositor barroco do Século XVII,
Marc-Antoine Charpentier.
Os
sinos a tocarem a “Eurovisão” ao jeito de festival, só pode mesmo ser obra do
Pedro.
Sigo
anónimo em direcção ao Rijksmuseum por entre a multidão que fotografa muito mais
do que compra tulipas e outras flores; mas até os anónimos têm direito a
afectos quando “navegam” assim pela cidade: da janela de um café onde junto à
montra toma o pequeno-almoço com os seus pais, um rapaz faz adeus a quem passa.
Trocamos
sorrisos no instante em que lhe retribuo o gesto, algo que parece deixá-lo
admirado. Os restantes adultos que passam serão todos demasiado carrancudos…
É
cedo e consigo entrar no museu sem grandes problemas, percorrendo as principais
galerias sem a multidão que mais para o final da manhã, bloqueia literalmente a
visão dos quadros.
Vou
no meu ritmo. Os meus amigos perdoam-me por certo este tique de egoísmo, mas
visitar museus é das pouquíssimas coisas que prefiro fazer sozinho.
E
neste “navegar” calmo pela arte, a determinada altura sou literalmente abalroado
por uma senhora, que pelo sotaque deduzo ser dos Estados Unidos, e que anda
ansiosa à procura da “Rapariga com Brinco de Pérola”, de Vermeer.
-
Vejo “A leiteira” e esse não.
Digo-lhe
calmamente que “esse” não mora aqui. A “Mona Lisa do Norte” vive em Haia.
E
a Americana lá desaparece entre a multidão, triste por ter menos uma história
para contar no regresso a casa.
Os
diálogos dos anónimos à sombra da arte.
A
loja do museu aguarda-me para os inevitáveis presentes que levo para os meus “mimis”,
leia-se sobrinhos; e sabe bem quando me sento para tomar uma bica na cafetaria.
Guardadas
no telemóvel, leio e releio as tuas mensagens.
Sou
um homem feliz quando me devolvo à rua onde já não chove… e recomeço a
caminhar.
Pode lá existir maior felicidade do que a de um homem que caminha livre
carregando as suas memórias, a sua história; e que caminha abraçado a palavras
de amor?
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