Aquele fim de tarde ou um momento especial que me abraça
O
resfriado e a chuva persistente convidam ao sofá e à escrita que
afortunadamente se suspende para o aroma de um café também temperado por
palavras… mas as da conversa do amigo que chegou para que por entre o cheiro a
pão quente que a máquina já exala e a vista do Cabo Espichel que a janela ao
longe oferece, pela amizade se possa partilhar a vida.
Não
tarda que descongele a sopa de feijão que a mãe outro dia lá deixou por casa e
eu, entretanto já novamente só, retomo a escrita.
De
repente e em sentido inverso há uma mensagem que chega e congela o coração: a
saúde de uma amiga poderá estar em risco.
Contactos,
telefones, pesquisas…
A
coisa afinal pode não ser tão grave quanto aparenta. Tempo de respirar fundo.
As
últimas mensagens trocadas já reflectem uma maior tranquilidade e com muita
mais paz me entrego à sopa de feijão que, confirmo, tem aquele toque único que
é carícia da Mãe Inácia, a única pessoa do universo que me considera magro
apesar dos meus 80kg.
Toca
o telefone e falo com o grande actor, que privilégio ter aquela voz entregue às
minhas palavras no dia do lançamento do livro em Lisboa. Fico feliz.
Quase
que nem me dava tempo de desligar, e o telefone soa com as palavras do amigo
artista, mas dos traços, que “estava morto” por partilhar o fim-de-semana de
Madrid e as cumplicidades que tornam os dias afinal tão especiais.
Nem
tenho tempo de regressar à sopa…
Toca
novamente o telefone e é o amigo que sempre me injecta paz e que sem saber é assim
informalmente uma espécie de assistente espiritual. Não é usual falarmos a esta
hora mas hoje por certo adivinhou que eu precisava de aliviar a tensão pelo
susto da saúde da minha amiga, e acabamos os dois a rir.
Toca
à campainha e a senhora da Ferro Expresso recolhe a roupa lavada que trará
passada a ferro na próxima semana. Diz que guarda a minha casa para o fim
porque eu tenho sempre uma palavra que a deixa bem-disposta. E lá levou a dita
palavra acabando por beneficiar indirectamente da conversa com o meu amigo que
ela nem faz ideia de que existe.
A
sopa continua a arrefecer abandonada no tabuleiro que coloquei sobre a mesa da
sala…
Toca
outra vez o telefone, o pai está muito feliz porque foi homenageado nos seus
quarenta anos ao serviço da Fundação. Alegro-me com ele e não consigo deixar de
me comover por entre essa alegria, lembro-me perfeitamente do dia em que ele
entrou ao serviço.
A
sopa está completamente fria.
Volto
a aquece-la e ingiro-a com o i-pad à frente e o youtube a “dar-me música”.
“Rosa
branca desmaiada”. Hoje apetece-me ouvir música alentejana e melhor condimento
não há para a sopa da mãe e a festa do orgulho do pai.
Já
é tarde quando me devolvo ao sofá mas ainda tenho tempo para uma conversa no
Facebook. E a determinada altura da conversa, o meu amigo envia-me as seguintes
palavras: “A tua escrita por vezes está tão bem tecida que bom seria se fosse
uma roupa de vestir, transmite conforto. É difícil de explicar, mas à
medida que se vai lendo é como estar a vestir devagarinho uma peça de roupa
macia”.
É
das coisas mais bonitas que já ouvi, que grande abraço dado assim por palavras.
E
que me melhor forma de terminar o serão e mergulhar nos sonhos.
É
isso que faço, não sem antes espreitar à janela de onde agora não vejo o mar
mas onde tenho a certeza de que ele existe e aguarda apenas o sol para se me
revelar azul na madrugada.
Por
essa esperança se embarca tantas vezes e em tantos dias.
Por
vezes com muita vontade de sorrir e outras em que sorrir é definitivamente o
que menos nos sai da alma e nos impõe vontade.
E
os fins de tarde e os serões são como a vida, porque são especiais pela
presença dos amigos e porque nem que só por um instante se consegue vislumbrar
algum leve traço da solidão, essa demasiado silenciosa assassina que nos
derruba a esperança.
Ao
fim da noite não tinham sido escritas muitas palavras no meu velho caderno
preto e nem uma nova página do romance tinha sido sequer começada.
Mas
o que faltou em palavras sobrou em razões para as fazer brotar agora.
Por mérito da amizade que é como quem diz, do amor.
Comentários
Enviar um comentário