Uma noite e o próprio fado
À
frente da minha janela vejo o Atlântico que me enche o olhar de azul até ao
horizonte, a linha onde não sabemos se o azul é céu ou mar, mágica ilusão de um
beijo na eterna paixão que une a Terra ao infinito celestial.
Atrás
de mim os vulcões de São Miguel vestidos de verde e bordados de hortênsias, as
histórias e os mistérios guardados em lagoas que num despudor saudável bebem do
céu e da Terra, as cores... e às vezes o azul.
Aqui,
Português no cais onde as gaivotas matam saudades da terra, o difícil é não ter
alma de marinheiro, raro é ter no peito outro suspiro que não o fado.
E
do fado carrego a memória de uma noite de há uns dez anos, à conversa nos
claustros do Convento de São Francisco, a Pousada de Beja, com José Luís Nobre
Costa e o Professor Joel Pina, respectivamente, guitarrista e viola de tantos
fados e tantos fadistas do meu tempo e de todos os tempos.
Num
dos acasos, num desses momentos inesperados que são bombons que a vida carrega
nos bolsos da nossa história, vejo-me a mim em amena cavaqueira com eles e com
uma amiga comum, iluminados pelo copo de um bom tinto alentejano e tendo por
mote uma paixão que nos une a todos: o fado.
E
de repente e ali tão perto: Amália a cantar em Atenas mas a sonhar com o seu
restaurante preferido de Paris, a mestria de Alfredo Marceneiro, Lucília do
Carmo, João Ferreira Rosa, Carlos Zel...
Todos
eles protagonistas das histórias que nos vão perdendo nas horas e nos levam bem
para lá do tempo de um serão.
Sem
o canto dos fadistas, sem as palavras dos poetas, sem os acordes da guitarra e da
viola que repousam a um “canto” do sofá da Pousada, esta foi a melhor noite de
fado que eu já tive, e duvido que venha a ter outra igual.
E
em pleno Alentejo.
Porque
entre a Terra e o Céu só há a distância de um passo para quem vive com o olhar
no horizonte, o guitarrista José Luís Nobre Costa partiu ontem para lá da
Terra.
Como
é costume, a imprensa não deu grande destaque ao facto, talvez porque ele
permaneça eterno no dedilhar que dá o tom a milhares de fados que vamos
continuar a ouvir por aí.
Na
minha memória também permanecerá eterno nesta gratidão de uma noite que jamais
conseguirei esquecer.
Que
descanse em paz no verdadeiro panteão, o dos Deuses, ali onde o escrutínio do
Homem é dispensado e onde têm assento todos os artistas, aqueles que ousam
entregar-se para que da Terra possa emergir a sua suprema beleza, e aconteça a arte.
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