A noite de Santo António
São nove e meia da noite e a auto-estrada A5
a caminho de Lisboa vai tão cheia quanto nas manhãs dos dias de labor.
Ao chegar ao túnel nas Amoreiras, viro para
Campolide e consigo estacionar no parque do Marquês de Pombal.
Saio para a Feira do Livro, vou até à banca
do "Nós" e já de caminho para a Avenida não resisto e compro uma
fartura.
Atravesso a rotunda sem trânsito e sem
bicampeão a sacudir o açúcar que se aloja na barba juntamente com o gosto a
canela, e ainda muito a tempo de ver o aquecimento da Bica na pré-descida da
Avenida.
Eu desço pelo lado esquerdo e apercebo-me que
já ninguém marcha. As trupes dos bairros dançam debaixo das luzes na zona das
bancadas e entre actuações, aproveitam para fumar um cigarro, as raparigas aliviam
os calcantes dos sapatos apertados e acode-se ao chamamento da família e dos
amigos.
Continuo a descer e oferecem-me uma sardinha
de cartão. Os meus sobrinhos irão deliciar-se com ela embora suspirem por um
capacete de manjerico ou de sardinha que vemos na cabeça de muita gente.
Passa Alcântara com carteiros, cartas e
marcos de correio. Ouço atrás de mim:
- Se isto é marcha... “ganda” porcaria.
Sentado junto ao gradeamento, um homem que
cantou o tempo todo e sabia as letras "afina" e atira:
- Isto é moderno. “Nã” percebem nada.
E afinfa para a do contra:
- Ié, ié é é... Alcântara é que é.
Deixo-os a discutirem bravamente a estética “marchante”
e sigo entre a multidão procurando um WC. Entro na Padaria Portuguesa e vejo
uma fila enorme. Tento confirmar com a última da fila se a espera é necessária:
- Avance que isto é só para a das mulheres. A
sua está vazia.
E não resiste ao desabafo para a colega do
lado:
- Raios partam isto. Os gajos pelo menos
mijam de pé e é só sacudirem e já está.
Ah grande noite de Santo António Lisboa que
traz o povo até à Avenida, definitivamente.
Saio e apetece-me uma cerveja.
Os Restauradores estão impossíveis e tento a
Rua das Portas de Santo Antão.
A malta veio toda comigo mas vislumbro uma
mesa e sento-me:
- Venham imperiais e algo para comer…
pica-pau, por exemplo.
O homem aponta-me para o tampo da mesa e para
os desenhos do Kebab e das chamuças.
- Venham então as imperiais.
O café é Indiano, o homem será Hindu mas leva
com um espontâneo “Feliz Santo António” quando me despeço já com a cerveja
tomada. É a universalidade da festa de Lisboa e o homem sorri.
Vou em direcção à Praça da Figueira e tenho
dificuldade em seguir na multidão acumulada sobretudo junto às portas das
tascas de venda de ginja.
Chego e escolho um manjerico.
- Há de quatro, seis e dez Euros.
Diz-me a vendedora.
- Um de seis mas com um cravo encarnado.
Entre a liberdade e o Benfica…
Mas recomendo:
- Se a quadra falar do Jorge Jesus eu não
quero.
- Qual quê… senhor. Hoje somos todos
campeões.
E aproveita o balanço para o pregão:
- Olhó o manjerico. É regar e pôr ao “luariiiii”.
À esquina explico a um grupo de estrangeiros
qual o caminho para o Intendente. Quando chegarem e se alguém acender um fósforo
ao pé deles puxa-lhes fogo.
Já há marchas dentro de autocarros para
regressarem aos respectivos bairros. Alfama vai aos gritos e como sardinha em
lata.
Sigo…
Subo a Avenida pelo lado direito e passa
Benfica.
Uma grita ali ao pé:
- Ié, ié é é... Benfica é que é.
Um ali ao lado avisa:
- Vê lá se te enganas?
- Não engano nada. Olha lá o Tó Mané. E olha
a Vanessa que até vem deste lado.
Fujo.
Vejo uma tenda de sandes com presunto serrano
e afinfo-lhe na dita com mais cerveja. Sempre é mais luso que a chamuça.
Passa o Alto do Pina com a madrinha Teresa
Guilherme.
Esta vai ganhar.
Continuo a subir a Avenida e da Alexandre
Herculano para cima é só brigadas de limpeza e carros de lavagem de rua.
Sento-me numa cadeira de uma bancada vazia
antes de subir o resto e de passar pela banca das farturas e comer mais uma.
A A5 vai cheia de carros em direcção a
Cascais e eu sigo com as barbas polvilhadas de açúcar e canela.
Viva o Santo António.
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