Escravos da regra no silenciar da fé
A
vela acesa tem o acrescido benefício de me confortar as mãos na noite fria de
Fátima.
À
minha volta há milhares de outras velas que resgatam rostos anónimos da
penumbra da noite, e a vela acesa é assim a expressão de uma fé que nos une a
todos.
A
mim e aos meus pais, ao casal de Irlandeses que desceu connosco no elevador do
hotel e que acabou a falar comigo de Temple
Bar, do jovem com a camisola da Selecção de Futebol da Colômbia que grita
golo no hall do hotel, da mulher que se descalça à minha frente no santuário quando
a procissão se prepara para sair, dos dois meninos americanos de riso incontrolável
que passam o terço a tirar fotos com o i-pad do pai, dos Chineses que rezam o
quinto mistério em Mandarim fazendo com que eu só entenda a palavra “Maria”,
das duas mulheres que há minha direita eu percebo que se namoram….
E
quantas mais histórias…
Ali
virado para a Capelinha das Aparições, penso também nos Jordanos com quem me
cruzei há dias, ajoelhados nos seus tapetes e virados para Meca, penso nas
raparigas Açorianas coroadas com a prata e os símbolos do Espírito Santo que vi
também há pouco tempo nos Açores, e penso como a fé tem afinal tantos rostos
quanto o número de Homens que habitam o universo.
E
o epicentro dessa fé será sempre o coração dos Homens, com independência do “altar”
ou da latitude para a qual nos viremos ou não na hora de rezar.
Na
noite fria de Fátima impera o silêncio por entre as velas acesas até ao momento
em que termina o terço e a procissão sai da Capelinha. Há então homens fardados
ou homens com uma braçadeira verde que gritam para a multidão, empurram gente
para a escravatura de uma linha preta desenhada estrategicamente na calçada,
mandam acelerar velhos e coxos com a mesma leviandade com que se organiza um baile
num serviço hospitalar de ortopedia… e já ninguém consegue rezar nem mais uma
Ave-Maria.
Foi-se
a paz e veio a estúpida regra de andar depressa sobre uma linha preta desenhada
no chão.
O
essencial, rezar, morreu às mãos da norma criada pelo Homem numa circunstância
meramente logística em que não hesitou impor-se sobre a fragilidade dos outros
fazendo de si um poderoso juiz.
Profético
e exemplificativo.
A
religião esmaga tantas vezes e inexplicavelmente a própria fé quando se
substitui ao essencial na norma estúpida da conveniência de meia dúzia de
poderosos.
E
se os “operacionais das religiões” tivessem cara de ressuscitados, e palavras e
gestos de gente de fé; nós até continuaríamos a rezar.
Mas
há linhas pretas no chão de Fátima e um horário rígido a cumprir, há burkas
sobre a face das Jordanas, há a moral que assenta mais nas convicções do que da
própria fé.
Crucifiquem-me
se quiserem, mas mesmo sendo católico e professando portanto uma religião, não
tenho quaisquer dúvidas de que os maiores fazedores de ateus são os
operacionais emissores e cumpridores de normas absurdas sacralizadas pelas suas
conveniências; os que habitam nos templos mais íntimos das religiões a fabricar
a moral.
A
noite continua fria quando abandonamos o santuário e nos dirigimos de novo de
volta ao hotel.
Falamos
de quê?
Do
homem e dos empurrões que levámos.
A
paz à hora do terço?
Já
passou.
A
fé?
Viverá
connosco eternamente e por cima de todas as convenções e meras circunstâncias da moral tantas vezes imbecil.
Comentários
Enviar um comentário