Esse mimar eterno que nasce das palavras
Acordar
em Vila Viçosa a ouvir os pavões e as badaladas do relógio da Torre do Paço,
tomar o pequeno-almoço com vista para o Terreiro desse mesmo Paço, percorrer as
estradas do Alentejo e sentir todas as cores da primavera, tomar o café do pós
almoço em Lisboa com vista para o Parque Eduardo VII, o Marquês e o Tejo, lanchar
uma limonada no Chiado à conversa com um bom amigo; são privilégios que não se
têm todos os dias e dos quais eu ontem pude usufruir.
Em
dia da criança, eu fui assim e definitivamente, um petiz muito mimado pela
sorte na magia de todas essas coisas.
Mas
a sorte também se procura e sobretudo se treina…
Por
força da sessão de autógrafos na Feira do Livro, tive de deixar Vila Viçosa
mais cedo do que é normal nos domingos dos fins-de-semana que por ali passo, e
acabei a almoçar sozinho num restaurante na zona do Marquês.
À
minha frente e sentados num sofá em meia-lua devidamente colocado junto de uma
mesa com a mesma forma, estava uma família constituída por pai, mãe e filho,
este último com uma idade algures pelos doze anos e sentado no meio dos seus
progenitores.
Não
pude deixar de reparar no almoço animadíssimo desta família…
O
filho estava concentrado num i-Pad e com os ouvidos tapados por uns
auscultadores, de forma que não o ouvi dizer absolutamente nada; quanto aos
pais, não fosse a funcionária ter enfrentado alguns problemas na hora de fazer
o pagamento com Multibanco, e teriam saído dali sem dizer uma palavra um ao
outro.
Um
almoço de família em dia da criança?
Possivelmente
sim mas para cumprir calendário, pois se um tivesse ido almoçar a Viana do
Castelo, o outro a Faro, e ainda o outro a Elvas; talvez se sentissem mais
acompanhados uns pelos outros por mérito de alguma possível mensagem escrita que
enviassem pelo telemóvel a dizer algo do género:
“Estou
a comer pizza”.
Perante
estes biombos de silêncio, tal frase já seria uma autêntica algazarra nesta
família que muito mais do que uma família, me parece uma “plataforma logística
de vida em comum” de onde às vezes nascem surpresas menos agradáveis.
Achei
interessante a forma e a disposição com que estavam à mesa, pelo facto de eu
ter tomado o pequeno-almoço com os meus pais exactamente da mesma maneira, só
com que vista para a janela da nossa sala que se abre ao Terreiro do Paço.
Sem
i-Pads, i-Phones, televisão e mais nada a não ser as palavras, não nos calámos nem
por um segundo, como é aliás típico nestas nossas refeições onde nunca faltam
assuntos que têm a ver connosco e com os dias que vamos vivendo.
As
nossas palavras que não são apenas ruído vago e sem sentido para preencher o
silêncio, mas que são a expressão sonora de muitos afectos e são os elos que
nos ligam e ligarão eternamente.
Pelas
nossas palavras à mesa, ou noutras muitas situações, quanta herança passou ao
jeito de uma “Transferência Genética”, quantos valores se transferiram de uma
forma natural e espontânea, quantas dores e medos se apagaram, quanto riso, quanto
eu cresci nesse privilégio de nunca deixar de sentir tão perto o infinito amor
dos meus pais; esse tanto amor que me oferece o privilégio de ser uma eterna
criança.
Pelas
nossas palavras que sempre encerram os nossos “sentires” e tantas memórias, se
foi criando a magia que tempera de especial todas as coisas banais de um dia
simples: um acordar ao som dos pavões dos Jardins do Paço, uma vista para o
Tejo ou uma limonada entre amigos num lanche no Chiado…
Tudo
isso e o treinar da minha sorte, eu, um petiz super mimado.
Que
Deus me conserve.
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