O tempo e o envelhecer
À
minha frente na sala de espera da consulta externa do Hospital da Luz está uma
senhora lindíssima sentada numa cadeira de rodas. Não sou muito bom a reconhecer
idades mas tenho a certeza de que o Cartão de Cidadã Nacional registará o seu
nascimento numa data há mais de oitenta anos.
Alguém
a transportou e a colocou face a face comigo deixando que os nossos olhares se
cruzem e ela acabe até por esboçar um ligeiro sorriso nesse preciso instante. A
mesma pessoa a transportará depois para a consulta quando chamarem pelo seu
nome.
Imagino
quantas histórias ela trará consigo “cravejadas” nas pernas já sem força e que
impedem que caminhe...
Quanta
vida lhe trará tingido assim de cinza o cabelo imaculadamente penteado por
alguém nesta manhã?
E
como olhará ela o tempo e o futuro por detrás daquele ser que já não existe de
forma autónoma, independente?
Que
cor terá o ver-se assim envelhecido?
Ontem
domingo estive com os meus pais em Fátima na celebração da eucaristia no
recinto, e junto a nós os três, estava uma outra família mas de dimensões bem maiores,
com uma senhora que identifiquei logo como matriarca e denominador comum dos
afectos de toda aquela gente.
À
hora do adeus à virgem, impressionou-me a forma convulsiva como chorou, quando
quase toda a gente por ali o fazia em silêncio, sendo denunciados apenas pelas
lágrimas insistentes que corriam rostos abaixo.
Eu
nunca entendi muito bem porque choramos no adeus a Fátima.
Será
a saudade dos muitos que lá estiveram um dia connosco e agora já não estão?
Será
a nossa própria saudade sobre aquele dia em que já não podermos estar ali?
Talvez
um pouco de tudo isto.
E
hoje ali na sala de espera, enquanto aguardava que chamassem o meu pai para a
consulta de rotina de oftalmologia, a imagem serena da senhora à minha frente
libertou-me na memória a senhora do choro de ontem, e juntei as duas talvez à
esquina do medo de envelhecer que quase nunca deixa as pessoas indiferentes, e
a mim por certo que também não.
Apeteceu-me
então sair dali e ir viver intensamente para que nenhuma palavra fique por
dizer ou escrever, nenhum beijo ou abraço fique adiado ou por dar, nenhum aroma
e gosto fiquem por consumir no prazer de momentos únicos e irreversíveis…
Um
dia, quando alguém me transportar seja para onde for por eu já não poder andar,
quero ter o ar sereno daquela senhora que sorri, tendo no entanto comigo o peso
de todas as histórias reservadas para mim no desenhar dos meus dias.
E
se nessa altura me levarem a Fátima também quero chorar muito.
Não por saudade dos que já partiram, não por saudade dos dias em que já
lá não conseguirei ir; mas chorar de alegria pela emoção de que o céu está ali
a um passo e de que a bagagem que levo vai carregada daquilo que de melhor há
no universo.
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