Bater à porta da guerra
Ao
estilo do Raul Solnado, eu um dia também bati à porta da guerra.
Não
o fiz por vontade própria pois sou e sempre fui um pacifista sem jeito sequer
para matar formigas, fi-lo porque em cumprimento de um dever (então,
obrigatório) de cidadão do sexo masculino, vi um dia afixado um edital na
Câmara Municipal de Vila Viçosa com a seguinte informação: "Marcha para o
Regimento de Infantaria de Faro, Destacamento de Tavira, o Soldado
Cadete..."
E
eu marchei (e não vale rir porque foi no verdadeiro sentido do termo) com mais
119 militares que por motivos de estudo fomos adiando a nossa incorporação. Faz
amanhã precisamente 22 anos e também era uma segunda-feira.
Já
com 25 anos de vida cumpridos e uma proeminente barriga, lá fui eu então correr
para as salinas de Tavira, um sucesso pela manhã quando saiamos do quartel de
calção curto e camisola de alças, e púnhamos as turistas a tirar-nos fotos.
Acho
que foi a única vez na vida que literalmente fiz parar o trânsito.
Tínhamos
aulas, testes e um Sargento tão letrado que uma vez, e quando nos explicava os
diferentes tipos de granadas, nos disse haver uma que era Anti-Túmulos. Quando
alguém tentou esclarecer se não seriam Anti-Tumultos, não perdeu tempo e
respondeu:
-
Anti-Túmulos ou Anti-Tumultos, pá... Pensam que sou o vosso professor de
Português?
De
tarde íamos para o campo simular ataques do e ao inimigo que surgia sempre
detrás de umas alfarrobeiras e figueiras que estavam misturadas com as obras de
construção da Via do Infante. Íamos devidamente camuflados e com a cara
mascarrada com os químicos que sacávamos dos boletins do Totoloto e do Totobola
que então existiam.
O
regresso do pelotão ao quartel depois de termos sacado muitas romãs no percurso
pelas quintas das redondezas e ao jeito de “Rambo ataca as esplanadas à beira
do Rio Gilão” chegava até a merecer aplausos dos turistas lusos e estrangeiros.
Vinha
todos os fins-de-semana a Lisboa com um grupo de mais três camaradas que então
conhecera e com quem aprendi a saborear o Cozido à Portuguesa em Canal Caveira
nas noites de domingo aquando do regresso ao quartel, e o meu abastecimento
para a semana feito no Pão de Açúcar das Amoreiras consistia basicamente em
Bolachas, Chocolates, Leite com Chocolate, Graxa para os sapatos, Meias de
Senhora e Pensos Higiénicos.
Perguntarão
agora:
-
Mas a recruta era no quartel de Tavira ou no Trumps?
Era
mesmo em Tavira e as meias serviam para dar brilho às botas e os pensos
higiénicos para proteger as pernas do atrito causado pelo roçar do cano das ditas
que os superiores nos exigiam que brilhassem como espelhos de Versailles se
tratassem.
De
cabelo rapado, o que me fez reencontrar as cicatrizes das quedas e pedradas da
infância no campo, relembro ainda do quartel a Tortilha de Cebola, os pratos de
alumínio que já estavam gordurosos quando vinham para a mesa, as sanitas só com
um buraco que nos obrigavam a defecar de cócoras e de perna aberta, e ainda a
meia hora para mudarmos de roupa e tomarmos banho em que pelo menos vinte
minutos eram para descalçar e voltar a calçar as botas.
Tudo
isto nos empurrava para fora do quartel e devidamente fardados lá íamos petiscar
para o Clube Náutico.
Mas
passei na recruta com boa nota, até no tiro em que na prova com a G3 ainda hoje
estou convencido que alguém atirou para o meu alvo, e na prova de pistola em
que literalmente arrasei os malmequeres que enfeitavam a pista e estavam por
debaixo do alvo.
Em
seis semanas fizeram de mim um Aspirante Oficial Miliciano Farmacêutico com
poiso no Hospital Militar Principal, em Lisboa, integrado num grupo de
simpáticos camaradas e onde, com bicas a quinze escudos e pasteis de nata a
vinte, isso mesmo, sete cêntimos e meio, e dez cêntimos, respectivamente,
acabei por engordar oito quilos ficando com um balanço positivo de dois dado
que tinha perdido seis nos tempos de Tavira.
No
final e após oito meses ao Serviço da Pátria ganhei um louvor escrito composto
por treze linhas que ainda hoje guardo como recurso para ler se for atacado por
um surto de baixa auto-estima, e como sou dos que olha sempre para o copo na
perspectiva positiva de meio cheio, guardo da experiência uma memória positiva
pelos amigos que então fiz e manterei na vida, entre os quais o meu querido Dr.
Patrício Freitas, ilustre clínico no Funchal e que tantas vezes me dá a honra
de vir até aqui ao Pomar.
Tiraram-me
uma fotografia com uma farda de gala que servia para todos, que só vestíamos da
cintura para cima e tinha um boné que assentava na cabeça de toda a gente mas
na minha não e teve ficar de lado ao jeito dos bêbedos; e voltei à vida civil.
E sempre pacifista.
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