É Natal mas o verdadeiro Cristo morre-nos aos pés
Acenderam-se
as luzes sobre as avenidas da cidade como que multiplicando por milhões a
estrela de Belém, ouve-se música de festa, fala-se despudoradamente de paz,
amor e alegria, as mesas afogam-se nos aromas das mais ricas iguarias, há um
pinheiro gigante iluminado junto ao rio… mas o Menino Jesus morre de frio
enrolado em papelões no átrio de mármore de uma loja cara onde durante os dias
limpam os pés os Reis Herodes na posse das coroas humanamente reconhecidas mas
muito pouco religiosas dos seus milhões.
Com
a roupa de há tanto tempo, todo o dia vagueou triste pela cidade naquele andar
por andar de quem nunca tem para onde ir; e a gente que nos templos beija
Meninos Jesus de barro virou-lhe a cara e continuou o seu trajecto guardando
para si o ouro, o incenso e a mirra… e deixando-o infinitamente mais triste no interior
deste túmulo frio de onde é impossível sonhar com a ressurreição de um domingo
de aleluias.
As
mãos lavadas na água benta do descartar dos políticos inconscientes, Pilatos do
nosso tempo empenhados na gestão de carreiras e estatísticas; o voto e a
condenação dos senhores da lei, dos hipócritas e dos poderosos, a coroa de
espinhos, a sede, a via-sacra feita de quedas, promissórias, empréstimos,
prestações; e sem Simão de Sirene, a generosidade de uma Verónica ou o
solidário pranto das mulheres de Jerusalém… esta dolorosa crucificação sem
pregos mas de pé sujo e descalço pela cidade mais bonita do universo.
Não
fosse a lua que nunca falha e persiste a brilhar para ele por cima das árvores
da Avenida; e neste Getsémani sem oliveiras mas com um estranho glamour escutar-se-ia em Português um
aflito e legítimo “Pai porque me abandonaste?”.
Lisboa.
São
quase seis da manhã, o frio está no topo, as palhas quentes são pedras geladas,
Maria é um grito chorado entre a dor e a saudade num Ave de como quem chama
pela mãe…
A
cidade está prestes a despertar para um dia de festa.
É
Natal mas o verdadeiro Cristo morre-nos aos pés.
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