As histórias eternas
Desde
sempre ouvi contar que uma das minhas bisavós, a mãe do meu avô Francisco,
entretinha os filhos e todos os amigos da vizinhança, contando-lhes histórias,
ao mesmo tempo em que por acção de um velho candeeiro de petróleo, projectava
na alva parede em frente da sua casa, as sombras dos dedos devidamente
alinhados para que tomassem a forma dos personagens destes enredos que
invariavelmente casavam os mistérios e as lendas que andavam de boca em boca
ali pelas redondezas.
Em
Vila Viçosa e na velha Rua de Évora da qual restam apenas as fachadas da actual
Avenida Bento de Jesus Caraça, do lado da Pastelaria Azul, que do outro lado
era a Rua do Espírito Santo antes da reforma dos anos quarenta operada por obra
do Engenheiro Duarte Pacheco; os serões quentes de verão tinham assim uma
animação extra que beneficiava ainda e em muitas noites, da música produzida
por alguns instrumentos artesanais que um outro vizinho tocasse ali pelas
redondezas.
Estas
histórias também chegaram aos serões da minha infância contadas pelos meus avós
ou tios-avós, já no tempo da luz eléctrica e sem direito a sombras na parede,
mas com palavras que prendiam a nossa atenção, no inverno, quando nos reuníamos
todos à volta da braseira por imposição do frio; ou então ao luar e sentados à
porta enquanto tentávamos descobrir uma brisa fresca por entre as noites
quentes de verão.
Lembro-me
de muitas dessas histórias que terminavam sempre da mesma forma:
-
O meu conto está terminado, e se vocês não se levantam já, vão todos acabar com
o rabo colado.
E
lá nos levantávamos todos de um salto não fosse a profecia cumprir-se nessa
noite e ficássemos irremediavelmente agarrados ao assento de buinho das
baixíssimas cadeiras coloridas e decoradas com desenhos de flores, como manda a
boa tradição no Alentejo.
Porque
são eternas e são detalhes valiosíssimos da melhor herança familiar, hoje sou
eu que conto essas histórias, já não por entre os candeeiros de petróleo, as
cadeiras de buinho ao luar e as braseiras de picão que nos aquecem no inverno;
mas contando com a concorrência desleal da Meo, da Zon, dos i-pads e afins.
Mas
já consegui que o meu sobrinho João me fizesse uma performance com fantoches
colocando um pequeno palco apoiado nas costas do sofá, no dia em que senti que
deverá ser eterno na família Barreiros este jeito para contar histórias usando
as palavras… e os dedos.
Pelo
menos já atravessou mais de um século e nada mais do que cinco gerações.
Ontem
ao final da tarde e depois de um cafezinho à conversa com o meu amigo Álvaro
Coelho no Oeiras Parque, cruzámo-nos com o actor Carlos Alberto Vidal e quase
dissemos em coro:
-
Olha o Avô Cantigas.
O
homem é pouco mais velho do que eu, e eu até terei agora mais cabelos brancos
do que ele, mas de repente e pela força das histórias ali presentes na memória,
ele foi definitivamente o avô e eu vi-me criança e para aí com menos sessenta
anos do que o seu personagem mais famoso.
Não
há dúvida que as histórias e a imaginação “matam” o tempo, devolvem-nos ao riso
e aos sonhos da infância e…
Fazem-nos
muito mais felizes.
Sigamos
pois pelo mapa e pelas coordenadas das histórias, e não matemos nunca o benefício
da fantasia que nos faz eternamente crianças cruzando tudo e até infinitas
gerações.
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