Yá meu. Tass.
Decidir
cortar o cabelo numa tarde de Abril em que os estudantes do secundário estão em
pleno gozo das férias da Páscoa é mergulhar inadvertidamente num caldo efervescente
de hormonas masculinas que nos afogam tudo e sobretudo a paciência.
Em
estágio para, mais ano, menos ano, irem todos em grupo até Torremolinos, Salou
ou qualquer outra estância turística espanhola onde possam atirar sanitas e
mobiliário pelas varandas dos empreendimentos; estes adolescentes (uma meia
dúzia) resolveram ir aparar o cabelo, mais do que cortar, levando nos i-phones e
outros aparelhos móveis de comunicação, os modelos / penteados dos seus ídolos
que, confesso, é gente de quem nunca ouvi falar.
O
cabeleireiro é um daqueles locais de Centro Comercial onde é possível fazer um “corte
expresso” quando nos sentamos numa das dezenas de cadeiras onde, de máquina ou
de tesoura em riste, actua um grupo de homens vestidos de preto e com
nacionalidades que entre a América do Sul e os Balcãs, mais parece o balneário
do Benfica em dia de jogo.
Desta
diversidade de “berços linguísticos” nasceu um primeiro problema: a
comunicação.
Embora
para mim com uma perspectiva interessante: é que o nível de Português dos
adolescentes que era bem pior do que o dos cabeleireiros estrangeiros mas
parecido com o do Jorge Jesus, permitiu que eu compreendesse algumas “discrepâncias”
técnico-tácticas que o Benfica por vezes apresenta no seu desempenho.
Não
é fácil.
Mas
por ali e se tivermos em conta que uma tesourada no cabelo é um acto
irreversível e irremediável, seis pessoas a alinharem cortes através de uma
conversa de surdos-mudos gerou uma “salganhada” e um caos que até as mulheres
dos papelotes que compunham a cor das melenas e que fazem habitualmente muito
mais barulho no seu sector anexo onde imperam manicuras, cheiro a tintas e
revistas cor-de-rosa do social; vieram espreitar o que se passava.
E
devem ter pensado que eu tinha trazido os meus seis filhos para que pudessem
cortar o cabelo, pois para além de eu ser o único cliente que tinha o cós das
calças na cintura e não revelava ao andar a cor das minhas cuecas; só a minha
presença aumentava a média etária dos presentes aí nuns bons vinte anos.
Essa
diferença justificava por certo a forma como todos me olhavam e que me fazia
sentir ao jeito de um bispo que entra paramentado e de mitra por uma discoteca em
“hora de ponta” ou uma vendedora de tremoços que irrompe pelo grande auditório
da Gulbenkian em dia de concerto para apregoar boa mercadoria e bons preços.
Não
fosse a cumplicidade do “meu” cabeleireiro Arménio expressa por discretas
piscadelas de olho através do longo espelho comum a todas as bancadas, e eu
seria definitivamente a mais isolada das criaturas naquela sala revestida de
caos linguístico e comportamental.
Do
teor da conversa entre clientes e cabeleireiros, e apesar dos gritos, não me
perguntem mais nada porque a única palavra que consegui verdadeiramente reter
foi “cena” e foi por excesso de repetição: “que cena meu”, “esta cena”, “aquela
cena”, “ganda cena”…
Registei
ainda um claro abuso do “Yá meu”, do “Tás a ver”, do “Bué”, do “Curte”, do “Tass”,
do “Men” e do “Coiso”.
Também
percebi que o “coiso” é inespecífico pois dá para tudo.
E
ali sentado e com o coração acelerado e com pressa de fugir fiz então
instintivamente várias coisas: canonizei e elevei aos altares e à condição de
veneráveis, todos os meus amigos que dão aulas no secundário; compreendi
definitivamente o meu Avô Chico quando afirmava que “no mê tempo é que era bom”;
senti-me velho porque muito mais próximo da geração dos meus pais do que da dos
meus “filhos”…
Já
na fase de lavar a cabeça no pós-corte, o rapaz que se submetia à mesma lavagem
ao meu lado, foi simpático e demonstrou-me que a “malta” é assim mas também não
custa nada a gente fazer um esforço para interagir de forma amistosa e “tapar”
o inevitável fosso inter-geracional:
-
O xô desculpe lá esta confusão.
Eu
sorri enquanto quase por contaminação me ia saltando um “porreiro pá” que ainda
travei a tempo.
-
Não há problema. Boas férias.
Respondi.
Foi
a vez de ele sorrir quase ao mesmo tempo em que eu saía…
A
compor a cintura e a alinhar o cós das calças não fosse dar-se o caso de a
contaminação ser mais do que linguística e alguém pudesse estar a ver a cor das
minhas cuecas.
Afinal, não fossem estas diferenças e possivelmente a vida não teria
tanta graça nem haveria histórias para contar por aqui.
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