O meu país de Abril
No
meu país de antes de Abril, a criatividade tinha o sabor dos dois pedaços de
pão que a minha avó entregava ao meu pai para a merenda; um maior que fazia de
si próprio e o outro mais pequeno que ele teria de imaginar ser o inacessível
queijo.
À
hora do jantar, a açorda carregava em si a “generosidade” dos senhores
abastados que entregavam à Avó Natividade o azeite que sobrara do fritar do
peixe.
No
meu país de antes de Abril, o Tio Zé aprendeu o valor do livre pensamento no
instante em que dois homens lhe bateram à porta pela madrugada e o esmurraram e
lhe partiram dois dentes ainda antes de lhe dizerem que o iam levar para
Caxias.
O
outro, o livre pensamento que é raiz das artes, era riscado a azul e eliminado
do som dos dias.
No
meu país de antes de Abril, a minha mãe cumpriu o previsível fado da sua
condição quando foi aprender a costurar apesar de ser uma das melhores alunas
da sua classe e pretender continuar a estudar para cumprir a sua vocação de
professora.
O
meu pai foi aprender a profissão de barbeiro porque recusou o patrocínio de uma
senhora que o ajudaria nos estudos, mas desde que a sua opção fosse o
seminário.
No
meu país de antes de Abril, os meus avós Joaquim e Francisca passavam os dias
de verão integralmente ao sol e a cortarem as ondas… mas as ondas das searas de
trigo que eles ceifavam sem descanso desde o nascer até à partida do astro-rei.
A
minha mãe e os meus tios levavam-lhes a merenda percorrendo quilómetros pelo pó
das estradas da planície.
No
meu país de antes de Abril, o Tio Lucas embarcou entre lágrimas no Cais de
Alcântara rumo à Guiné para lutar numa guerra da qual desconhecia os contornos;
e voltou diferente passados três anos, porque nunca ficamos iguais depois de
andarmos pelo mato a recolher os pedaços do corpo de um amigo que na véspera
jantou connosco e esteve à conversa a partilhar os seus planos para o futuro.
No
meu país de antes de Abril a dor vivia tatuada nas histórias de muita gente. A
dor tinha milhões de nomes e apelidos.
Há
precisamente quarenta anos, a madrugada de 25 de Abril de 1974 fez surgir o dia
mais importante para mim e para toda a minha geração.
Sobre
os pecados de uma História e de uma dura memória que conservo em mim, nasceu o
privilégio de um dia celebrado com cravos da cor da bravura e do tom do sangue
dos imortais, a rubra cor inscrita orgulhosamente na bandeira de Portugal.
O
dia em que a História dobrou a esquina e entrou alegre pelo privilégio de um
caminho feito de paz e liberdade.
Pela
mão de inquestionáveis heróis morreram os nossos tão tristes e previsíveis
destinos, e hoje, no meu país de Abril, eu sou muito mais dono dos meus dias,
posso dizer “sim” ou dizer “não”, posso pensar livremente, posso gritar,
revoltar-me, posso soltar as palavras que me são ditadas pela alma, posso amar à
luz do dia quem verdadeiramente o coração escolheu, posso crer no Deus da minha
fé, posso ser tudo e… posso ser muito mais eu.
25
de Abril de 1974.
Passaram
quarenta anos.
Questione-se
tudo e até a imbecilidade dos políticos, mas nunca, mesmo nunca, se questione o
infinito valor que em si carrega a liberdade.
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